terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Qual o limite da troca entre sofrimento animal e conhecimento científico?

Por Rafael Loyola
fishing-net
É possível e ético minimizar a captura ou morte de animais com própositos científicos. 


Foto: Pixabay


A curiosidade e o desejo pelo saber são os motores primordiais da ciência. Cada nova descoberta é mais um facho de luz no obscuro universo que nos cerca. Com cientistas que trabalham com a biodiversidade e sua conservação não é diferente. Mas o que acontece quando esse desejo começa a interferir na própria natureza?



Há algum tempo, pesquisas feitas em laboratório e que envolvam experimentação ou sofrimento animal devem ser previamente aprovadas por comitês de ética. Essa prática garante, a princípio, que os cientistas não ultrapassem limites aceitáveis pela sociedade em busca de respostas para suas perguntas. Quando não houve limites para a busca do conhecimento, observamos na história avanços científicos acompanhados de consequências desastrosas, como os estudos com humanos feitos pelos nazistas.


Entretanto, ainda hoje, a regulamentação das pesquisas por comitês de ética tem foco em trabalhos feitos em laboratório e não no campo, no meio da natureza. Para trabalhos de campo que envolvem coleta de material biológico, experimentação e observações, os comitês tendem a ser mais brandos. Na verdade, eles seguem princípios que envolvam a ausência ou minimização do sofrimento animal (plantas costumam ser ignoradas), mas geralmente não limitam coletas de indivíduos em campo.



"Para nossa surpresa, um mês depois recebemos outro trabalho, com as mesmas características: milhares de animais mortos em uma área protegida e nenhum avanço real do nosso conhecimento. "



Recentemente, um grupo de editores da tradicional revista científica Biological Conservation (eu entre eles) escreveram um artigo que vem dividindo opiniões. Nele, explicamos que recebemos um trabalho para ser avaliado pela revista, visando sua eventual publicação. Nesse trabalho, os autores mataram milhares de peixes dentro de uma área protegida para mostrar que dentro dessa área havia mais indivíduos do que fora dela. Como conclusão, eles diziam que a área protegida era eficiente em preservar aquelas espécies, que se reproduziam melhor em locais onde a pesca era proibida (pelo menos até o momento, inclusão minha).


Após conversa entre editores, decidimos negar o trabalho por razões éticas. Ou seja, não aceitaríamos um trabalho enviado para uma revista de conservação da natureza que matava milhares de peixes para provar o que todos nós, convenhamos, já sabíamos. Os autores ficaram furiosos e reclamaram com a revista, argumentando que o trabalho havia sido autorizado pelo comitê de ética da sua instituição. Mas não houve choro nem vela e o trabalho foi negado, sem sequer ter sido revisado pelos pares.


Para nossa surpresa, um mês depois recebemos outro trabalho, com as mesmas características: milhares de animais mortos em uma área protegida e nenhum avanço real do nosso conhecimento. O estudo foi negado com as mesmas considerações. Mais uma vez os autores ficaram indignados... e isso me leva a uma pergunta difícil: que dimensão de ética os pesquisadores têm? Ela pode ser relativa?


Limite
Em nossa opinião, os que escrevemos o artigo em prol de uma ética conservadora em trabalhos de campo, é inconcebível um profissional da conservação realizar um estudo que preveja a morte de milhares de indivíduos, sobretudo dentro de uma área protegida. Mas para nem todos é assim e por isso o artigo levantou uma discussão.


Alguns profissionais, principalmente zoólogos, botânicos e taxonomistas (os cientistas responsáveis por descrever, catalogar e sistematizar nosso conhecimento sobre a biodiversidade) argumentaram que é preciso haver coletas para que nossas coleções sejam depósitos fiéis do existe no mundo lá fora dos museus e herbários.


E, de fato, há métodos desenvolvidos para que as coletas sejam feitas de modo apropriado. Entretanto, a pergunta persiste: até que ponto essa coleta é aceitável? Qual o limite para acumular indivíduos?


Recentemente estive em um comitê que avaliava projetos de conservação a serem financiados por uma organização sem fins lucrativos. Dois desses projetos chamaram a atenção do comitê. Em um deles, os proponentes fariam marcações em pererecas arborícolas por meio da amputação de alguns de seus dedos (falanges). Esse é um método conhecido por cientistas que trabalham nessa área, mas eticamente questionável. Hoje em dia, há alternativas para esse tipo de marcação, e mais, não será prejudicial cortar os dedos de pereceras que os usam para subir nas árvores?


Afinal, elas são arborícolas. No outro projeto, os pesquisadores acreditavam ter encontrado uma nova espécie na natureza, mas para confirmar precisariam ter acesso aos indivíduos. Segundo o projeto, eles o fariam sem sofrimento para os animais, mas caso isso não fosse possível, teriam que abater pelo menos um animal. O mais estranho é que, dentre os materiais necessários para a pesquisa e solicitados como item financiável do projeto, os proponentes incluíram uma carabina!


Eu fico pensando... quem tem a ideia de pedir uma carabina em um projeto submetido à uma organização que financia a conservação da natureza? Nenhum dos projetos foram financiados pela organização, é claro.

Em nosso artigo argumentamos que profissionais trabalhando com conservação da natureza devem estabelecer padrões éticos muito altos e servir de exemplo para outros profissionais. Antes de realizar um estudo, os autores devem avaliar se aquela pesquisa é necessária e se os fins justificam os meios. Minimamente, precisam se perguntar: algum animal ou planta será prejudicado pela pesquisa?


Se sim, há métodos menos invasivos ou prejudiciais para fazer a pesquisa e coletar os dados necessários? Por quanto tempo e sob qual área os impactos da pesquisa vão persistir? No trabalho há uma tabela com mais detalhes para os leitores mais curiosos.

A revista em questão continuará a negar trabalhos cuja ética, ainda que aceitável pelas instituições por meio das quais o trabalho é desenvolvido, seja questionável ou inaceitável para os editores.

Alguns acham que o papel dos editores não é esse, outros, acham que os editores têm que zelar pela qualidade e respeito pela natureza nos trabalhos publicados nas revistas nas quais trabalham.

A discussão é saudável e eu fico com o grupo conservador: conservar a natureza é um dever de todos nós e licenças para matar – como a do 007 – só podem ser concedidas em ocasiões muito especiais. E você, em que grupo está?
Saiba Mais
Mark J. Costello et Al.  Field work ethics in biological research (Ética do trabalho de campo na pesquisa biológica), publicado em Biological Conservation

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