quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Brasil tenta regular novo mercado de carbono

Por Claudio Angelo, do Observatório do Clima

O Palácio Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores. Foto: Expedia.
O Palácio Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores. Foto: Expedia.


Alguém aí se lembra do mercado de carbono? Após passar por maus bocados na última década, quando ganhou o apelido de “pior commodity do mundo”, o CO2 deve ressuscitar para o sistema financeiro global nos próximos meses, com a entrada em vigor do Acordo de Paris.E o Brasil quer ditar regras para sua comercialização: no começo do mês, o governo brasileiro submeteu à Convenção do Clima das Nações Unidas duas propostas de regulamentação do artigo do Acordo de Paris que trata dos mecanismos de comércio de emissões. 
 
 
O país quer discutir as propostas durante a COP22, a conferência do clima de Marrakesh, que começa em exatas duas semanas, no próximo dia 7.Grosso modo, o que o Brasil quer é evitar que créditos de carbono “podres” ponham todo o sistema abaixo e impeçam o mundo de atingir as metas do acordo do clima.O temor é justificado por dois fatores: primeiro, de agora em diante, todos os 195 países-membros da ONU mais a União Europeia poderão comprar e vender créditos de carbono. 
 
 
 
Depois, como as metas de redução de emissões são todas estabelecidas domesticamente – ou seja, cada país corta carbono e mensura esses cortes como bem entende – há um risco real de que alguns lancem no mercado créditos por emissões que não estão reduzindo de verdade. Isso seria um desastre para o próprio mecanismo, mas, sobretudo, para a atmosfera.Como em tudo que diz respeito a negociações de clima, porém, o diabo mora nos detalhes. 
 
 
 
Se por um lado a necessidade de botar ordem no galinheiro dos créditos de carbono dificilmente será contestada, por outro há diversas maneiras possíveis de fazer isso. E a interpretação do Brasil sobre o que deve ser permitido ou não nesse mercado provavelmente encontrará resistências.Uma delas já desponta em parte setor ambiental, uma vez que uma das submissões brasileiras deixa claro que projetos de redução de desmatamento (o chamado Redd+) não devem ser elegíveis para gerar créditos de carbono no chamado MDS (Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável), criado pelo parágrafo 4 do artigo 6 do Acordo de Paris.
 
 
 
 
O MDS, nas palavras de uma fonte do governo, é imaginado pelo Brasil como um “ultra-esquema de certificação”, por meio do qual qualquer empresa, governo subnacional ou país que adote formas mais baratas e seguras de reduzir emissões poderá comercializar créditos de carbono num mercado internacional.Ele virá substituir o MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), um dos chamados mecanismos de flexibilização do Protocolo de Kyoto. 
 
 
 
 
O Brasil tem um xodó histórico pelo MDL, que se originou de uma proposta brasileira na conferência de Kyoto, em 1997. Pelo mecanismo, países desenvolvidos com metas de redução de emissões a cumprir podiam financiar projetos de plantio de florestas ou de energia limpa em países em desenvolvimento, onde em tese é mais barato fazer essas reduções. Esses projetos geram créditos, transacionáveis no mercado.



Carbono Florestal
Por resistência do Itamaraty, o governo federal barrou a inclusão da conservação de florestas nativas no MDL. O argumento de fundo era uma questão de soberania: a Amazônia pertence ao Brasil e não deve ser objeto de mercado internacional – se quisermos desmatar até o último palmo de floresta para bancar nosso “desenvolvimento”, ninguém tem nada com isso. A justificativa prática era que botar uma cerca numa floresta (que poderia pegar fogo ou ser desmatada depois) era um jeito muito fácil de países industrializados se livrarem de fazer seu dever de casa e cortar emissões domesticamente no setor de energia. Várias ONGs encamparam esse argumento. As florestas ficaram fora do mercado em Kyoto.



Em vez de pagar pelo desmate evitado, os países ricos pagariam pelas reduções no desmatamento que fossem verificadas nos países pobres. 
No entanto, como o desmatamento respondia por mais de 10% das emissões mundiais, o tema acabou entrando na pauta na forma do Redd+, ou redução de emissões por desmatamento. Em vez de pagar pelo desmate evitado, os países ricos pagariam pelas reduções no desmatamento que fossem verificadas nos países pobres.



 Como não havia legalmente maneira de abater isso das metas dos países ricos, o Redd+ acabou virando um mecanismo voluntário, que funciona por meio de doações. Um exemplo é o Fundo Amazônia, mantido sobretudo com dinheiro norueguês.



Com a substituição de Kyoto pelo Acordo de Paris, diversos atores, como governos estaduais, ONGs e projetos comunitários e privados de Redd+ esperavam ver uma explosão de recursos para florestas num novo mecanismo de mercado. Caso a proposta brasileira seja aprovada em Marrakesh, esses atores se frustrarão em sua expectativa.



“É triste ver que o governo brasileiro segue com a mesma posição de dez anos atrás, totalmente alheio ao que se passa na Amazônia”, disse Mariano Cenamo, do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas), organização que defende projetos de Redd+.
“O Brasil é dos países do mundo com maior potencial para Redd+. Está na hora de discutirmos de forma madura e transparente como vamos financiar a conservação de nosso maior ativo, nossas florestas”, afirmou André Guimarães, diretor executivo do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).



O Itamaraty considera que o Redd+ é matéria vencida no Acordo de Paris: ele é regulamentado pelo artigo 5, que trata de florestas de maneira genérica, fazendo referência a acordos anteriores sobre o assunto. A interpretação do governo brasileiro desses acordos anteriores é que o Redd+ é um mecanismo nacional (ou seja, só o governo federal detêm a posse do “ativo”, que é o carbono contido nas florestas) e que os pagamentos por redução de desmatamento só podem vir de doações, como as do Fundo Amazônia, não de créditos transacionáveis.



Em outras palavras, para o governo brasileiro, se o governo da Califórnia quiser vir ao Acre e pagar pela conservação, tudo bem; mas, se o Acre quiser vender à Califórnia créditos de conservação em troca de uma dedução de carbono da meta californiana, isso não deve ser permitido. Isso, segundo o governo, foi um assunto encerrado na conferência de Cancún, em 2010, e é assunto que não deve ser reaberto.



“Isso é uma posição exclusiva do governo federal. Não se trata de nenhuma regra ou imposição da Convenção do Clima”, diz Cenamo. Segundo o Idesam, o Brasil teria potencial de captar bilhões de reais para reduzir o desmatamento por meio de créditos de Redd+. Os governadores da Amazônia, por sua vez, queixam-se de que têm “pago a conta” da redução da taxa de desmatamento, mas que seus esforços não têm sido compensados – e veem o Redd+ como forma de obter essa compensação.




“Acho uma pena que a oportunidade possa ser perdida de corrigir problemas com o MDL por ocasião da regulação do Acordo de Paris”, disse o físico Gylvan Meira Filho, do Instituto de Estudos Avançados da USP. Ele foi um dos autores da proposta brasileira original que deu origem ao MDL, e hoje vê a impossibilidade de geração de créditos por redução de desmatamento como um “problema” do sistema de Kyoto.




“Há uma confusão generalizada entre a [proteção de florestas e a] redução de emissões pela redução da taxa anual de desflorestamento e projetos específicos que, a meu ver, deveria poder ser contabilizada para a geração de créditos e comercializada dentro de cada país e, de acordo com as regras a serem estabelecidas pelo Acordo de Paris, para ser usada em outros países.  Tudo isso registrado, sem uso duplo de reduções.”




Comércio de emissões
A outra proposta brasileira diz respeito ao comércio de emissões entre países, possibilidade delineada pelo parágrafo 2 do artigo 6 do Acordo de Paris e que também tem análogo no Protocolo de Kyoto.

Se um país consegue reduzir suas emissões além da meta, ele pode transacionar o excedente no mercado, e países que não conseguiram reduzir tanto assim podem comprar esses créditos e deduzi-los da própria meta.
Esse mecanismo foi o que deu origem ao ETS, o mercado de carbono europeu. Se um país consegue reduzir suas emissões além da meta, ele pode transacionar o excedente no mercado, e países que não conseguiram reduzir tanto assim podem comprar esses créditos e deduzi-los da própria meta. Só que em Kyoto isso só era permitido entre países desenvolvidos. 
 
 
Em Paris, todos os países têm meta, então todo mundo pode comprar e vender.

A regra que o Brasil quer estabelecer é que só poderão ser transacionadas as emissões que estiverem abaixo da média reportada nos três últimos inventários nacionais de emissões. Assim, um país que tenha uma NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) expressa em termos de desvio de trajetória (ou seja, projeta-se qual seria a emissão em 2030 se nada for feito e reduz-se em relação a essa projeção) precisará efetivamente entregar reduções de CO2 se quiser vender créditos.


De outra forma, seria possível projetar qualquer valor em 2030 e vender créditos inflados, uma espécie de título podre no mercado de carbono. O próprio Brasil fez essa mágica contábil em 2009, ao projetar suas emissões em 2020 assumindo um crescimento do PIB de 4% ao ano. Na época, porém, não era possível gerar crédito com a meta.


Se aprovada, a restrição proposta provavelmente reduzirá a quantidade de créditos passíveis de entrar no mercado, o que pode aumentar o preço da tonelada de CO2. Isso estimularia os países a operarem as reduções mais baratas logo, para ganhar dinheiro vendendo a commodity nas bolsas – acelerando a ação climática global. Mas o ponto principal é que ela ajuda a assegurar a chamada “integridade ambiental” do acordo, fazendo com que cada tonelada de carbono comercializada seja de fato retirada da atmosfera.


Ao mesmo tempo, e no mesmo documento, o Brasil propõe que certificados de redução de emissões (CER) gerados pelo MDL no Protocolo de Kyoto possam ser carreados para o Acordo de Paris para continuarem a ser transacionados. A Caixa Econômica Federal, por exemplo, possui certificados que acabariam “encalhados” se não fossem vendidos até o fim da vigência de Kyoto, em 2020.



O governo diz que a medida é importante para sinalizar ao setor privado que o que eles fizerem para cortar emissões terá continuidade. Mas outros países poderão enxergar nela a proverbial mão do gato: afinal, reduções feitas sob Kyoto se reportam a metas que já deveriam ter sido cumpridas antes da adoção das metas de Paris: não representam ambição adicional nenhuma para o novo acordo do clima.

Republicado do Observatório do Clima através de parceria de conteúdo. logo-observatorio-clima

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