quarta-feira, 8 de março de 2017

Recorde de degelo global em janeiro e fevereiro de 2017, artigo de José Eustáquio Diniz Alves




“Para cada mil pessoas dedicadas a cortar as folhas do mal,
há apenas uma atacando as raízes”.
Duzentos anos do nascimento de Henry Thoreau (1817-1862)

from NSIDC sea ice concentration data

[EcoDebate] Não há mais como contestar. Os negacionistas das mudanças climáticas perderam totalmente seus argumentos, claramente, anticientíficos. O degelo global bateu todos os recordes em janeiro e fevereiro de 2017. Depois de três anos (2014, 2015 e 2016) de temperaturas muito elevadas, sem precedentes no Holoceno (últimos 10 mil anos), a desglaciação do Ártico, da Groenlândia, da Antártica e dos glaciares atingiu um recorde, como mostra o gráfico acima (ArctischePinguin – ver link abaixo).


A tendência de queda é clara ao longo dos últimos 40 anos. A curva acima tem uma distribuição bimodal, pois o hemisfério Norte tem pico de gelo em fevereiro, quando o hemisfério Sul está no vale (mínimo de gelo), sendo que em julho a Antártica está no máximo de gelo e o Ártico no mínimo. O máximo do gelo global acontece entre outubro e novembro. Seguindo as curvas anuais (todas com este mesmo tipo bimodal de distribuição), nota-se que elas mostram uma tendência de queda em relação à média de 1981-2010, embora haja oscilações anuais de curto prazo, diferentes da tendência de longo prazo.


Porém, chama a atenção que o padrão de queda na extensão de gelo, desde setembro de 2016, não tem paralelo nos últimos 40 anos, quando se começou as medidas por satélite. A curva de 2016 sofreu uma queda abruta no último trimestre do ano (outubro a dezembro) e continuou batendo recordes de baixa nos dois primeiros meses de 2017.


A tendência de queda nos meses de janeiro e fevereiro é clara no Ártico, como mostram os gráficos abaixo da NSIDC – National Snow & Ice Data Center. O ano de 2011 havia batido os recordes dos anos anteriores. O degelo nos meses de janeiro e fevereiro entre 2012 e 2016 foi um pouco menor do que em 2011. Mas, em 2017, o nível de gelo no Ártico ficou abaixo de qualquer outro período anterior. O Ártico foi atingido por ondas de calor (para os padrões do inverno ártico) nunca vistos, consequentemente, a formação de gelo foi menor. A vida dos animais do polo Norte corre sério perigo de extinção. A tendência do degelo é evidente pelos gráficos abaixo.

extent anomalies

Ao contrário do Ártico, a Antártica estava aumentando a extensão de gelo desde 1978. As causas deste aumento são complexas e envolvem a força dos ventos, as correntes marinhas, o ciclo hidrológico, etc. Todavia, nunca, desde o início da medição por satélites, a extensão do gelo nos meses de janeiro e fevereiro, foi tão grande como em 2014 e 2015. Mas essa tendência foi revertida e a redução do gelo na Antártica foi enorme em 2016 e bateu todos os recordes negativos em 2017, como pode ser visto nos gráficos abaixo.

extent anomalies

Uma das constatações do degelo é que uma imensa rachadura na plataforma de gelo Larsen C cresceu profundamente em dezembro de 2016 e falta pouco para que um imenso bloco de cerca de 5 mil km² (equivalente a área do País de Gales ou da Região Metropolitana do Rio de Janeiro) se desprenda da plataforma Larsen C.


Os gráficos abaixo da NSIDC – National Snow & Ice Data Center – mostram, com dados diários, que a extensão de gelo no Ártico e na Antártica nos últimos 4 meses está bem abaixo da média do período 1981-2010 e bem abaixo desta média mesmo quando se considera o desvio padrão da variabilidade natural (área em cinza). Também está abaixo das curvas mais baixas já existentes. Ou seja, nunca se viu tanta perda de gelo como tem acontecido em janeiro e fevereiro de 2017.

arctic and antarctic sea ice extent

As imagens abaixo mostram o máximo de gelo no inverno da Antártica nos meses de setembro de 2015 e 2016. Mostra também que o nível de gelo no verão da Antártica no mês de fevereiro de 2017 está muito abaixo do nível do mesmo mês em 2016.

sea ice extent sea ice extent

Além do Ártico e da Antártica, há mais duas áreas que estão contribuindo, de maneira acelerada, com o processo de desglaciação: a Groenlândia e os glaciares do Canadá. Assim, o aumento do nível dos oceanos é inexorável e trata-se de saber apenas quanto e quando isto vai ocorrer.


Artigo de John Abraham, no jornal Guardian (24/02/2017), mostra que a perda de gelo da Groenlândia aumentou substancialmente nas últimas décadas e é responsável agora por aproximadamente 1/3 ao aumento total do nível do mar. Observa-se que as águas ao redor da Groenlândia estão como se estivessem de cabeça para baixo.


A água quente e salgada, que é pesada, fica abaixo de uma camada de água fria e fresca do Oceano Ártico. Isso significa que a água quente está no fundo, e as geleiras sentadas em águas profundas podem estar em apuros. À medida que a água quente ataca as geleiras marinhas (geleiras que se estendem para o oceano), o gelo tende a quebrar e partir, recuando em direção à terra.



 Em alguns casos, os glaciares recuam até que sua linha de aterramento coincida com a costa. Mas em outros casos, a superfície ondulante permite que a água quente use a parte inferior da geleira para longas distâncias e, assim, aumentar o risco de grandes eventos de “parto”. Muitas vezes, quando as geleiras perto da costa se rompem e descascam, o outro gelo pode então fluir mais facilmente para os oceanos.

greenland melt extent 2016

Artigo de Nicole Mortillaro, na CBC News (20/02/2017), mostra que as geleiras do Canadá estão respondendo rapidamente ao aquecimento do Ártico e são, atualmente, um dos principais contribuintes para a elevação do nível do mar. Pesquisadores da University of California Irvine estudaram dados coletados de 1991 a 2015 sobre geleiras encontradas nas ilhas Rainha Elizabeth no Ártico. Eles descobriram que, de 2005 a 2015, o derretimento superficial desses glaciares aumentou em 900%.


Há duas maneiras pelas quais os glaciares perdem gelo: o derretimento superficial e a descarga de icebergs, conhecidos como partos. Antes de 2005, a massa perdida das geleiras nas ilhas da rainha Elizabeth foi compartilhada quase igualmente entre os dois, em 48% e 52%, respectivamente.
No entanto, após 2005, o derretimento da superfície tornou-se o principal contribuinte da perda de gelo: agora representa 90% das perdas totais na região. Eles passaram a derramar três gigatons de água anualmente para 30 gigatons – algo que tem sérias consequências. Enquanto a Groenlândia e a Antártida possuem a maior quantidade de água doce do mundo sob a forma de geleiras e lençóis de gelo, o Canadá também tem sua parcela significativa. O país é o lar de cerca de 20 por cento das geleiras do mundo e, como resultado, é o terceiro maior contribuinte para a mudança do nível do mar.

queen elizabeth islands

O gráfico abaixo dá destaque para os dois primeiros meses dos anos de 1978 a 2017. Nota-se que a extensão de gelo global é a menor em 40 anos, bem abaixo de 2015 e 2016 e bem abaixo da média 1981 a 2010 (mesmo considerando o desvio padrão). Este recorde negativo de degelo é preocupante e indica que o mundo vai caminhar para uma era de grande inundação.

global ice extent

O filme “Before the Flood” retrata como a civilização está gerando problemas crescentes no Planeta e é um poderoso instrumento de conscientização dos problemas climáticos e da grave crise ambiental por que passa a humanidade. Esta crise tende a se agravar quando o governo Donald Trump (conforme discurso no Congresso de 28/02/2017) corta os gastos para a proteção do meio ambiente e aumenta os gastos militares, além de incentivar o consumo conspícuo.


Enquanto a governança global está sobre ameaça devido ao crescimento do nacionalismo e do militarismo, o Acordo de Paris está sob ameaça. Mas o aquecimento não arrefece e o declínio do volume global de gelo é uma realidade inquestionável como mostra o gráfico abaixo.

declínio do volume global de gelo nos dois hemisférios

O fato inescapável é que o aumento das emissões de gases de efeito estufa (a queima de combustíveis fósseis, liberação de gás metano na pecuária e no permafrost, etc.) eleva a temperatura da atmosfera e dos oceanos e aumenta o degelo global, acelerando a elevação do nível dos oceanos. A Groenlândia tem o potencial de elevar os oceanos em 6 metros e a Antártica em 60 metros. O degelo total pode provocar a subida em mais de 70 metros. Mas apenas 3% de degelo já seria para elevar as águas marinhas em mais de 2 metros, nível suficiente para provocar grandes danos.


Há dois bilhões de pessoas que vivem a menos de dois metros do nível do mar no mundo. O naufrágio das áreas costeiras vai, dentre outros efeitos, agravar o problema dos deslocados. A crise dos refugiados da guerra da Síria vai parecer um acontecimento trivial perto da crise gerada pela invasão das águas salgadas nas costas litorâneas de todo o mundo.


Referências:
ALVES, JED. O alarmante declínio do volume global de gelo no Planeta, Ecodebate, 13/02/2017
ALVES, JED. O colapso do gelo da Antártica e o aumento do nível do mar, Ecodebate, 17/02/2017
Nicole Mortillaro. As Arctic warms, Canada’s glaciers playing major role in sea level rise, CBC News, 20/02/2017
Brandon Miller. Antarctic sea ice reaches record low, CNN, 16/02/2017
John Abraham. OMG measurements of Greenland give us a glimpse of future sea rise, Guardian, 24/02/2017
Leonardo DiCaprio. Before the Flood (Legendado em português), National Geography, 31 de out de 2016 https://www.youtube.com/watch?v=aV9w_chyuf4
Chris Mooney. Antarctic ice has set an unexpected record, and scientists are struggling to figure out why, Washington Post, 01/03/2017
ArctischePinguin https://sites.google.com/site/arctischepinguin/home/global-sea-ice
NSIDC – National Snow & Ice Data Center: https://nsidc.org/data/seaice_index/

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 03/03/2017


"Recorde de degelo global em janeiro e fevereiro de 2017, artigo de José Eustáquio Diniz Alves," in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 3/03/2017, https://www.ecodebate.com.br/2017/03/03/recorde-de-degelo-global-em-janeiro-e-fevereiro-de-2017-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/.

Patriarcado: a Submissão da Mulher e a Devastação Ambiental, artigo de Paulo Mancini



by Redação - 8/03/2017

Dia Internacional da Mulher


GÊNERO E MEIO AMBIENTE


Patriarcado: a Submissão da Mulher e a Devastação Ambiental

 
Sincronia ocorre quando dois ou mais eventos ou fenômenos ocorrem ao mesmo tempo (cronos) ou simultaneamente. 



Evidências antropológicas e arqueológicas apontam que as primitivas sociedades humanas coletoras-caçadoras eram regidas por regras relativamente igualitárias entre homens e mulheres. 


A partir da Antiguidade – período definido cronologicamente com o surgimento da escrita, por volta de 4.000 anos A.C. – começam a surgir sociedades patriarcais, onde o homem exerce maior poder social e tem mais direitos que as mulheres, como pode ser observado já no Código de Hamurabi dos babilônios na antiga Mesopotâmia (região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates, onde hoje estão localizados Iraque, parte da Turquia, Síria e irã), primeiro sistema jurídico que compila diversas legislações anteriores (p.ex. Código de Ur) e regula toda vida social de uma comunidade. 



Especialmente entre 2.000 e 5.000 anos A.C existiram muitas sociedades onde as Deusas, mais que os Deuses, eram veneradas – aliás palavra que remete a adoração de Deusa romana Vênus, Deusa do Amor, na Grécia chamada de Afrodite – e às mulheres estava destinado o poder de partilha dos recursos. São conhecidas como sociedades matriarcais a Civilização Minoica da Ilha de Creta na Grécia e muitas outras em toda Europa, norte da África e parte da Ásia.



A cultura celta, predominante na região da Bretanha, mesmo com o posterior domínio romano, conservou muitos traços culturais do matriarcado, que notamos até a modernidade com a presença de grandes rainhas-mãe, como Rainha Vitória e, agora, a Rainha Elisabeth II. Não por acaso, também na Inglaterra, em meados do século XVII, temos os primórdios – depois das Revoluções Puritana e Gloriosa – da democracia liberal representativa.




Nas sociedades matriarcais predominam relações de respeito e adoração à natureza, com quem, naturalmente, as mulheres sempre foram associadas, já que é através delas que ocorre a criação, a encarnação. Não à toa, é frequente chamarmos a natureza de Mãe ou Mamãe Natureza, e nosso planeta de Mãe Terra. Na concepção matriarcal o homem seria apenas o “semeador anônimo”1, a escolha, a seleção da semente a germinar e a se desenvolver era domínio ou dom da Mãe. 



Em seu livro “A Prostituta Sagrada” (Editora Paulus), a antropóloga Nancy Qulls-Corbett demonstra através de textos históricos e objetos arqueológicos que a nos antigos templos de Vênus ou Afrodite, Deusa do Amor, as sacerdotisas a serviço da Deusa, também chamada de Virgens do Templo, “eram virgens no sentido original do termo, pessoa íntegra que servia de mediadora para que a deusa chegasse até a humanidade”2. Muitas destas virgens tinham filhos – obviamente frutos do ‘Amor’ que, através delas, Vênus ou Afrodite ofertava aos homens que buscavam o templo e a ele davam seus óbulos – donativo, contribuição doada por fiéis nos templos religiosos, como gratidão.



Vênus de Milo


Estátua com 202 cm encontrada próxima ao Porto de Milos nas Ilhas Cíclades na Grécia, em 1830. Trata-se mesmo de Afrodite, Deusa do Amor correspondente à Vênus romana. 


O significado original da ‘virgindade’ consistia no fato da virgem ser um ‘indivíduo’, ou seja, ser ‘inteira’, integra, não ser apenas ‘parte’, a ‘outra metade’.



De forma resumida, sintética e, inevitavelmente, caricata podemos dizer que no matriarcado a humanidade se considera parte da natureza, estabelecendo com ela uma unidade; como ela, a natureza, também é criadora, mas dela totalmente dependente e devedora; a quem – ainda que com ela se relacione com muita liberdade e intimidade – deve todo respeito e adoração. Predominam, no matriarcado, relações mais horizontais, menos hierárquicas, dos homens e mulheres entre si e destes com o restante dos seres vivos. 



Com o patriarcado, estabeleceu-se uma divisão entre espírito e matéria. O espírito, masculino, positivo, centrífugo; e matéria, feminino, negativo, centrípeto. Uma relação hierárquica, onde o Espírito é superior e subjuga à matéria. Notem que a palavra matéria, deriva, etimologicamente, de latim ‘mater’, isto é, ‘mãe’. Nele, no patriarcado, a natureza, a matéria, enfim, a mulher, foram criadas para seu usufruto, para seu domínio, conforme relatos de várias tradições religiosas. Tudo que está relacionado ao feminino, à matéria, à natureza é corruptível, mortal, sedicioso. 


O patriarcado estabeleceu uma hierarquia onde tudo que é superior está ligado ao polo masculino, solar, positivo, celeste, espiritual, objetivo. Ao polo feminino restou o plano inferior, o noturno, lunar, telúrico, negativo, material, subjetivo. 



FEMINISMO E AMBIENTALISMO: SINCRONIA E IDENTIDADE 



Foi a partir da segunda metade do século XIX, que o movimento de lutas pelos direitos das mulheres começa a reverberar a tríade de conceitos evocados pela Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade (ou solidariedade). Mais precisamente foi em 1857, quando trabalhadoras de uma indústria têxtil de Nova Iorque, em greve para redução da jornada de 18 horas de trabalho e outros direitos trabalhistas e forma duramente reprimidas pela Polícia que acabou incendiando a fábrica com as trabalhadoras no seu interior, levando a morte de muitas delas. De lá para cá, foram muitas as conquistas de direitos sociais das mulheres no mundo todo e também no Brasil. 


Mas ainda hoje, de forma geral, somos uma sociedade impregnada pelo patriarcalismo ou machismo, onde as mulheres em média trabalham mais que os homens e recebem salários menores. A violência contra as mulheres é estatisticamente alarmante, e a participação feminina na gestão dos poderes públicos – Executivo, Legislativo e Judiciário – ainda está longe de ser proporcional à composição demográfica brasileira, onde as mulheres correspondem a 51,3%. O número de homicídios de mulheres no Brasil vem aumentando: em média são assassinadas 13 mulheres por dia, sendo a maioria mortas por familiares; a maioria negra e, proporcionalmente, a maioria nos pequenos municípios onde predominam os tradicionais valores patriarcais. 



A expressão ‘ecologia’ – de certa forma inaugurando o movimento ecológico – foi criada por volta de 1870 pelo pensador, médico e pesquisador alemão de anatomia comparada Ernest Haeckel, como sendo, a ciência que estuda as inter-relações entre os seres vivos e seu ambiente e entre si mesmos. 



Curiosamente, mas não coincidentemente, Haeckel, além de um grande defensor e divulgador da Teoria da Evolução, estabelecida por Charles Darwin em “A Origem das Espécies” em 1855, filosoficamente considerava-se ‘monista’, isto é, adepto da crença na unidade entre todas as coisas existentes no universo, em oposição às posturas ‘dualistas’ que consideram a existência de duas realidades como, p.ex., espírito-matéria, completamente separadas. Chegou mesmo a fazer palestras sobre o tema e a escrever um opúsculo sobre o monismo. 



Houve tempo que as mulheres eram – como e, muitas vezes ‘com’, a terra – vendidas como propriedades de seus pais e maridos. A conquista e a exploração da natureza ainda plenamente presente na consciência humana contemporânea – mesmo com o abismo de seu esgotamento já esteja anunciado não por místicos e artistas como na segunda metade do século XX, mas por cientistas de toda parte do mundo. 



É crescente a consciência de que “A terra não nos pertence; nós pertencemos à terra”, como anunciou o Chefe indígena Seatle a um presidente americano que manifestou interesse– também no início da segunda metade do século XIX – em comprar as terras do povo Seatle. Mas nosso imenso e descomunal lixo despejado diariamente sobre nossa Mãe Terra, mostra que ainda predomina o paradigma da natureza como bem a ser conquistado (como as ‘namoradas’, não?), explorado, usufruído ilimitadamente. 



A ecologia, como ciência, representa uma mudança paradigmática na evolução do pensamento cientifico moderno fundado no racionalismo analítico que para compreender um todo analisa minuciosa e metodicamente suas diferentes partes. A partir da Renascença a ‘filosofia natural’ foi fatiada em diversas disciplinas. Os estudos ecológicos enfatizam e pesquisam exatamente a RELAÇÃO entre as diversas partes de um todo, com a consciência de que o todo (holo) é maior – às vezes surpreendentemente diferente – que a simples soma das partes. 



A valorização da mulher e do feminino e, principalmente seu empoderamento – isto é a tomada de consciência por elas mesmas de seus direitos e potências, sem que isso signifique que assumam (vide Margareth Thatcher, ás vezes de forma compensatórias ainda mais duras, valores patriarcais destrutivos – é o caminho para a reconciliação da humanidade consigo mesma e desta com seu meio natural, sua mãe, o húmus (terra fértil), que está na raiz de seu nome. Que está também na raiz da palavra ‘humildade’, qualidade necessária para a promoção dessa reconciliação. 


Paulo J. P. Mancini, São Carlos, 08 de março de 2017

Transposição, a hora da verdade, artigo de Roberto Malvezzi (Gogó)




transposição do rio São Francisco

[EcoDebate] Há uma certa euforia a respeito da reta final da Transposição de águas do São Francisco para o chamado Nordeste Setentrional. Elio Gaspari, na Folha de São Paulo, disse que a “Transposição de Lula é um sucesso”. É compreensível também a euforia da população receptora. Nós aqui, que somos obrigados a olhar a floresta e não só a árvore, mantemos nosso olhar crítico sobre essa obra.


Em primeiro, a água ainda não transpôs o divisor e não chegou aos estados do Setentrional, mas permanece nas barragens do Pernambuco. Houve vazamento na barragem de Sertânia e o município foi obrigado a remover 60 famílias atingidas pelo vazamento. Houve morte de pequenos animais e destruição de bens familiares.


Segundo, permanecem as encruzilhadas da obra que sempre chamamos a atenção: essa água transposta será para o povo necessitado dos estados receptores ou para o agro-hidronegócio e indústria? Dilma já disse que para real posto nos grandes canais, serão necessários dois reais para fazer as adutoras que, de fato, levarão a água aos municípios.


Essa é a primeira diferença entre o projeto de várias adutoras – que defendíamos – e a mega obra da Transposição. Se a opção fosse pelas primeiras, a água já teria ido direto – por tubulação simples – para os serviços municipais de água e estariam dispensados os grandes canais. A opção foi pela grande obra. Talvez hoje, depois da Lava-Jato, fique mais claro o porquê.


Acontece que o cenário político mudou. Se Lula-Dilma tinham interesse em fazer as adutoras a partir dos grandes canais, o atual governo pretende criar o maior mercado de águas do mundo, privatizar as águas da Transposição – que significa também privatizar a água de chuva já acumulada nos reservatórios do Setentrional – e não demonstra interesse algum em fazer sua distribuição.


Por último, a revitalização do São Francisco. Lula-Dilma diziam que iriam fazer a revitalização do São Francisco simultaneamente à grande obra da Transposição. O único investimento que deu resultado foi o saneamento, embora ainda inconcluso e desperdiçando obras iniciadas como as estações de tratamento de Pilão Arcado e as adutoras em Remanso. Aqui em Juazeiro o saneamento avançou.


Essa iniciativa é positiva, mas insuficiente. Sem atacar as causas de destruição do São Francisco, que abrange toda sua bacia, mas principalmente a devastação do Cerrado, não haverá São Francisco em breve tempo.


Hoje, o São Francisco está com uma vazão de 750 m3/s, quando nos garantiam que a partir de Sobradinho sempre seria de 1800 m3/s.. Portanto, hoje o volume de água é 1/3 do que os técnicos previam para garantir a água da Transposição.


Sobradinho – a caixa d’água que garante o fluxo abaixo – está com 11% de sua capacidade. O período chuvoso está terminando e todos os usos na bacia, a não ser por um milagre da natureza, estarão comprometidos.


Hoje o mar avança de 30 a 50 km São Francisco adentro, salgando as águas que abastecem a população ribeirinha de Sergipe e Alagoas. Se continuar nesse ritmo, em breve comprometerá a adutora que abastece Aracaju. O rio perdeu força, o mar avança.


O que tem salvado a população nordestina nesses 6 anos de seca foi a malha de pequenas obras hídricas, como as cisternas. Com essas tecnologias e outras políticas sociais vencemos a fome, a sede, a miséria, a migração, os saques e a mortalidade infantil. O IDH subiu em toda a região e o crescimento foi visível em relação a outras regiões do Brasil. Logo, não foi a grande obra. O paradigma da convivência com o Semiárido mostrou-se eficaz, enquanto o paradigma do combate à seca só encheu as burras dos coronéis.


Portanto, olhando a árvore o sucesso da Transposição está garantido, olhando a floresta os problemas continuam e se acumulam.


Roberto Malvezzi (Gogó), Articulista do Portal EcoDebate, possui formação em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Atua na Equipe CPP/CPT do São Francisco.
www.robertomalvezzi.com.br
OBS: A intenção de Temer e Alckmin de tirar uma lasquinha na inauguração da Transposição excede todo ridículo.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 07/03/2017
"Transposição, a hora da verdade, artigo de Roberto Malvezzi (Gogó)," in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 7/03/2017, https://www.ecodebate.com.br/2017/03/07/transposicao-hora-da-verdade-artigo-de-roberto-malvezzi-gogo/.

Contaminação ambiental por cemitérios, artigo de Roberto Naime



Cemitério
Cemitério. Foto: EBC

[EcoDebate] Um dos maiores especialistas do país, na contaminação gerada pela percolação de necrochorume nos terrenos, é o geólogo Leziro Marques da Silva que atua na área há algumas décadas. Alicerçado em observações realizadas por este agente ambiental, se estima que cerca de 75% dos cemitérios do país tenham problemas com vazamentos de necrochorume, que é o líquido resultante da decomposição dos corpos, e que contamina preferencialmente aquíferos freáticos e eventualmente reservas subterrâneas.


Dados registram que num intervalo de até seis meses após a morte, um corpo de 70 quilos tende a perder até 30 quilos em forma de necrochorume. A contaminação do lençol freático, em locais em que a profundidade da água é muito pequena, é de natureza química e microbiológica, com os materiais podendo contaminar os seres vivos de qualquer natureza, com uma série de moléstias e doenças infectocontagiosas.


Os elevados índices de crescimento da população, cada vez mais exigem áreas maiores para sepultamento de corpos humanos. As áreas que acabam destinadas pelo setor público ou por empreendimentos privados para a implantação de cemitérios geralmente são escolhidas entre áreas de baixa valorização econômica, quase sempre em regiões de reduzido desenvolvimento socioeconômico. Com frequência, são áreas de baixios ou com possibilidades de sofrerem inundações, ainda que esporádicas.


Estas são áreas com características geológicas e hidrogeológicas não adequadas ou mesmo não avaliadas devidamente, o que pode levar a problemas sanitários e ambientais de enorme complexidade. Áreas de cemitérios geram alterações no meio físico e por isso, devem ser consideradas como fontes sérias da ocorrência de impactos ambientais.


A realidade determina que a maioria dos cemitérios existentes no país, tende a ter instituição bastante antiga. Na época de sua fundação, não existia nem conhecimento suficiente dos impactos que poderiam ser gerados, nem difusão de boas práticas que hoje são recomendáveis, aceitas, praticadas e consensuais. Uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente, de número 335, estabeleceu que todos os tipos de cemitérios, tanto verticais como horizontais, deveriam ser submetidos a processos de licenciamento ambiental.


Os terrenos em que estão instalados os memoriais necrófilos, operam como filtros das impurezas carregadas por dissolução no necrochorume e que percolam nos substratos de solo e rocha. Os processos de decomposição que se instalam em corpos cadavéricos, liberam diversos metais que são constituintes do organismo humano. Também estão presentes nas urnas funerárias, utensílios que vestem ou adornam o corpo. No Egito antigo, onde predominavam crenças de reencarnação ou metempsicose, as pirâmides ou outros locais eram abastecidos inclusive com alimentos, além de roupas e variadas utilidades.


Na decomposição dos corpos, ocorre a formação de um líquido conhecido como necrochorume, de aspecto viscoso e coloração castanho-acinzentada, que contém cerca de 60% de água, 30% de sais minerais e 10% de substâncias orgânicas degradáveis, além de eventuais micro-organismos em quantidade reduzida, próxima ao que se considera como meros traços ou indícios.


Nos terrenos com alta umidade, ocorre um processo conhecido como “saponificação” pelo qual se patrocinam a “quebra”, ou decomposição de moléculas das gorduras corporais, resultando em liberação de ácidos graxos. Os compostos liberados exibem alta acidez, o que inibindo a ação de bactérias que tem a função putrefativas.


Caixões de madeira tendem a não ampliar a contaminação dos terrenos. Desde que, as substâncias conservantes da madeira não contenham metais pesados, como cromo, ou substâncias do grupo dos chamados organoclorados. Urnas processadas com madeiras não tratadas se decompõem em períodos ainda mais curtos, atenuando os impactos. Caixões de metal podem provocar contaminação do solo por metais como ferro, cobre, chumbo e zinco. A ampliação de impactos contaminantes pode ser causada pela prata, que é utilizada na confecção de alças de urnas.

Decomposição de corpos gera a exalação de alguns gases, que não é apropriado aqui descrever todos os processos químicos, por desnecessário. Atualmente, devido ao alastramento dos casos de câncer, grande quantidade de cadáveres, são submetidos a processos de radioterapia ainda em vida. Isto, adicionado à ingestão de substâncias anti-neoplásicas, amplia o período de decomposição do féretro, produzindo também contaminações derivadas da radioatividade.


A presença de construções, que são usadas como túmulos, que se encontram em mau estado, apresentando rachaduras e fissuramentos, e a má gestão de resíduos sólidos nestes locais, são problemas adicionais de grande relevância, potencializando ainda mais os impactos ambientais identificados.


Não inspira criar alarmismos, mas a ingestão exagerada por qualquer motivo de substâncias nitrogenadas, como nitratos, pode gerar moléstias como a meta-hemoglobinemia, popularmente conhecida como síndrome do bebe azul. Esta é apenas uma exemplificação, não havendo proposição exaustiva de esgotamento do tema.


Cemitérios em edifícios, também denominados de verticais são uma alternativa para as instalações convencionais, que são sujeitas a todos os impactos ambientais já descritos e considerados. Nessas unidades os corpos são dispostos em lápides que tem finalidades específicas. As construções se assemelham a edifícios comuns, como é o caso do Memorial de Santos, no litoral de São Paulo. Esse tipo de instalação tem diversas vantagens em relação ao cemitério horizontal.


Por derradeiro, as práticas de cremação apresentam vantagens também quanto à eliminação de microrganismos patogênicos no processo realizado em temperaturas elevadas. A cremação elimina por completo essas fontes naturais de poluição. Assim, a cremação é uma forma de garantia e segurança ambiental aqueles que continuam vivos.


Não há intenção de induzir ninguém a realizar quaisquer práticas. Que, em qualquer contexto ou situação, colidam com seus princípios religiosos ou mesmo sobrenaturais. Mas se suscita uma reflexão sobre uma questão cada vez mais importante na medida em que aumentam as populações e se ampliam as expectativas de vida. Para que todos possam usufruir de melhor qualidade ambiental e melhores condições de vida.


Referência:
Cemitérios como Fonte de Contaminação Ambiental, Pedro Kemerich, Fernando Ernesto Ucker e Willian F. de Borba. (http://www2.uol.com.br/sciam/artigos/cemiterios_como_fonte_de_contaminacao_ambiental.html).

Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.