sábado, 6 de agosto de 2016

Cidades invisíveis


01/08/2016
 
 
O que há por trás dos projetos atrelados aos megaeventos e como isso afeta os direitos, a saúde e a vida urbana
Célio e Felipe vão vestir laranja no mês dos Jogos Olímpicos. Laranja é a cor dos garis. Maria de Lourdes, a Maria dos Camelôs, fechará a barraquinha de roupas femininas que mantém no Centro da Cidade nos três feriados municipais decretados pelo Prefeito — mas seu espírito olímpico não é mais o mesmo de quando torcia pelo Brasil com churrasco e roda de samba. Dona Irone, a mãe de Vitor Santiago, terá pouco tempo para ver os atletas disputando medalha pela TV. 
 
 
Ela agora se dedica integralmente aos cuidados do filho baleado pelo Exército quando voltava para casa, na favela Vila Pinheiro, no Rio de Janeiro. Rodrigo, o motorista da linha 804, que atravessa a zona oeste da capital fluminense, estará em trânsito, como sempre. O vigia Altair Antunes, que perdeu a casa durante a remoção da Vila Autódromo, achava que tinha o direito de ficar ali por "99 anos". Anda desacreditado do país da festa olímpica.
 
Desde que o sotaque carregado do membro do Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou o Rio de Janeiro como cidade-sede da Olimpíada de 2016, já se passaram sete anos. Antes, em 2007, a capital fluminense havia recebido os Jogos Panamericanos e, em 2014, viria a sediar a Copa do Mundo da Fifa. 
 
 
A sucessão de megaeventos gerou uma série de transformações no espaço urbano da cidade, deixando o Rio mais dividido. Às vésperas da abertura dos jogos, o muro que separa um conjunto de favelas da principal via de acesso ao Aeroporto Internacional ganhou adesivos coloridos. Autoridades dizem que as placas cumprem a função de isolar acusticamente o local e impedir o acesso dos moradores das comunidades próximas às vias expressas. Para os moradores, é maquiagem para turista ver.
 
 
Nesta reportagem, Radis discute o direito à cidade e o impacto dos grandes eventos no cotidiano de seus habitantes. Ouviu pesquisadores e especialistas, mas também conversou com esses heróis anônimos que contam a cidade do cartão-postal pelo avesso.
 

Cidades para quem?

Millôr Fernandes, humorista, escritor e atleta nas horas vagas, costumava elogiar o frescobol como o mais democrático dos esportes, o único em que não há vencidos nem vencedores. No frescobol, para que o jogo funcione, é necessário cooperar com o parceiro. Ao lembrar dessa curiosidade durante uma aula pública no Centro do Rio de Janeiro, em março, o urbanista Carlos Vainer utilizou uma metáfora oportuna para um país às voltas com a realização de uma Olimpíada: nossas cidades estão cada vez menos tomadas pelo espírito colaborativo do frescobol. Para o professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur-UFRJ), o modelo de cidade evidenciado pelos megaeventos é competitivo. 
 
De um lado dessa arena, está um projeto de cidade mais humana, destinada às pessoas, em que o interesse público fala mais alto e valores como a solidariedade ainda não viraram um clichê. 
 
 
Do outro, a cidade-espetáculo, voltada para os negócios, uma nova forma de regime urbano que funciona sob a caneta do mercado e da economia. “Ao aproveitar os jogos como desculpa para transformar uma cidade, o que está em disputa é um novo projeto hegemônico”, disse Vainer. “E o modelo que resulta desse processo é segregador e excludente, só acelera as desigualdades”. Isso o estudioso chama de “cidade de exceção” — numa referência ao conceito de “estado de exceção”, caracterizado pela suspensão temporária de direitos e garantias constitucionais.
 
 
 
Na “cidade de exceção”, esclareceu, a ordem pública sucumbe a uma série de desvios dos padrões tradicionais. É o que acontece durante os preparativos para a realização de uma Copa ou de uma Olimpíada, quando se cria toda uma legislação específica para servir aos interesses do capital: regime diferenciado de contratação, isenção tributária para hotéis, leis que permitem que municípios se endividem com obras, exemplificou. No caso do Rio de Janeiro, para receber os Jogos Olímpicos de 2016, a cidade passou por transformações que modificaram o seu desenho urbano e afetaram profundamente a vida de seus habitantes.
 

“Desculpe os transtornos”

Ao trafegar pela cidade, o morador se depara com um verdadeiro canteiro de obras — muitas delas inacabadas — que incluem desde a construção de instalações esportivas e reforma dos equipamentos até infraestrutura no campo da mobilidade: modernização e expansão do metrô, construção de corredores de ônibus e de sistemas de transporte urbano, obras viárias e reformas de aeroporto. 
 
 
Muito além dos transtornos temporários, a passagem do megaevento pela cidade deixa marcas dramáticas. O Comitê Popular da Copa e Olimpíadas — uma articulação de organizações populares e sindicais, pesquisadores e atingidos pelas obras dos megaeventos, que atua no Brasil desde 2010 — estima que, no Rio de Janeiro, por razões direta ou indiretamente vinculadas às intervenções do Projeto Olímpico, pelo menos 4.120 famílias já foram removidas de suas comunidades e 2.486 permanecem ameaçadas de remoção. 
 
“Nossas cidades passam por uma representação ideológica que encobre a realidade”. Foi o que disse a urbanista e professora da Universidade de São Paulo (USP), Ermínia Terezinha Menon Maricato, durante uma palestra realizada no final de junho, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) — no Rio, os meses que antecederam a Olimpíada foram tomados por palestras, seminários e atos públicos que discutiram os impactos dos megaeventos. Ermínia citou o exemplo do Porto Maravilha — projeto de requalificação da região portuária do Rio — como um emblema dessa cidade-espetáculo que nega a tragédia urbana varrendo para as margens da cidade tudo o que não cabe no mercado imobiliário. 
 
 
 
De acordo com o Dossiê “Megaeventos e violações dos direitos humanos no Rio de Janeiro”, a região portuária, com cerca de 5 milhões de metros quadrados, abrigava vários prédios públicos da União, do estado e do município que estavam vazios e ociosos. Sem cumprir a sua função social, esses imóveis foram ocupados por populações sem-teto, removidas durante as obras de reestruturação da região. Para Ermínia, em função de um mercado imobiliário altamente especulativo, cada vez mais a população de vulneráveis vai sendo expulsa e, em muitos casos, passa a ocupar áreas ambientalmente frágeis. Foi o que aconteceu em São Paulo, cidade que também teve o seu traçado urbano alterado por conta da Copa do Mundo da Fifa, em 2014. 
 
 
 
A urbanista sustenta que as cidades brasileiras vivem um progresso conservador, com saltos de modernidade que carregam o atraso, o machismo e o preconceito. Ela apontou um mapa de São Paulo em que se pode ver a concentração de empregos em uma área central com uma enorme quantidade de habitações na periferia. “É um massacre passar cerca de duas horas e 40 minutos da sua vida, diariamente, no transporte”, indignou-se, acrescentando que trabalhador não “evapora” depois da jornada de trabalho. “Deveria haver um controle do uso e da ocupação do solo com sistema viário eficaz que te permitisse morar a 100 quilômetros do emprego e isso não ser um problema”.
 
 
 
Em entrevista à Radis, o pesquisador do Observatório das Metrópoles, Orlando Júnior, disse que nesse modelo de cidade mercantilizada em que os negócios falam mais alto que as pessoas, o resultado é uma cidade partida com espaços urbanos cada vez mais desiguais. “É uma irracionalidade promover o deslocamento das classes populares construindo periferias ou o que pode ser chamado de não-cidade”, argumentou. Para Orlando, tudo se resume a uma questão de prioridades. “Independente de gostarmos ou não da derrubada da Perimetral, precisamos saber em que medida isso era prioridade para a cidade do Rio de Janeiro”, diz ele, referindo-se ao viaduto que veio abaixo como parte do Projeto Olímpico.
 
 

Megaeventos

Para especialistas ouvidos por Radis, não há como discutir projetos de cidade sem levar em conta os megaeventos, cada vez mais frequentes em uma dimensão global. O sociólogo Fernando Maldonado, que escreve uma tese de doutorado sobre o assunto, disse que os megaeventos se caracterizam por atrair uma enorme quantidade de pessoas para as cidades-sede, mas principalmente pelas modificações que eles impõem a essas cidades. “Os megaeventos geram uma preocupação administrativa e de apresentação pública distinta de eventos que ocorrem em uma escala menor”, afirmou. 
 
 
 
Em sua pesquisa, Fernando compara a Copa do Mundo realizada na África do Sul, em 2010, com a experiência brasileira de dois anos atrás. Ele considera aspectos como infraestrutura, habitação e trabalho informal. Em relação à cidade do Rio de Janeiro, Fernando aponta que a população mais vulnerável vai ficando cada vez mais pobre, com menores índices de desenvolvimento humano e com dificuldade de acesso a direitos básicos como saúde. “A Copa do Mundo e a Olimpíada são uma forte narrativa sociopolítica usada para justificar mudanças em nome de um projeto hegemônico de cidade”, disse, explicando que os megaeventos servem, portanto, para o poder público efetivar determinadas transformações na cidade sob a desculpa da manutenção da ordem pública — algo que, sem eles, seria muito mais difícil de acontecer.
 
Recentemente, em entrevista à rede americana CBS Sports (28/6), o governador em exercício do Rio de Janeiro, Francisco Dornelles, admitiu que os Jogos Olímpicos podem ser um grande fracasso, alegando os problemas com a segurança do evento.  Na mesma toada, em 14 de julho, depois de denúncias de corrupção e superfaturamento em obras, o prefeito Eduardo Paes declarou em entrevista ao jornal inglês The Guardian (14/7) que a “Olimpíada já é uma oportunidade perdida”, usando como desculpa a crise política e econômica do país: “Com todos esses escândalos, este não é o melhor momento para estar nos olhos do mundo”. Mas o prefeito continua sustentando os impactos positivos que as obras terão na cidade a longo prazo. “Nunca houve tanta transformação nesta cidade para as pessoas pobres”, afirmou. “Os Jogos Olímpicos são uma grande inspiração para que as coisas sejam feitas”.
 

Cidades rebeldes

Entre 8 e 11 de março, o Rio de Janeiro sediou o evento “Cidades rebeldes, espaços de esperança”, que contou com a participação do geógrafo britânico David Harvey, um dos grandes pensadores contemporâneos sobre o direito à cidade, e de representantes de movimentos que apostam na ação coletiva para construção de um outro modelo de cidade. Radis acompanhou o evento. Na ocasião, Harvey foi categórico: “O Rio é uma grande cidade. Mas é uma cidade melhor sem os megaeventos do que com eles”. O estudioso comparou o exemplo carioca com o que aconteceu na cidade espanhola de Barcelona, durante os jogos de 1992 e cujo modelo inspirou o brasileiro. “Barcelona se tornou uma commodity. O custo de uma cidade-commodity é muito elevado. Os preços sobem e as pessoas comuns não podem viver no Centro da cidade. Elas não se beneficiam de nenhuma forma”.
 
Para Harvey, o direito à cidade emerge como uma pauta capaz de unificar os diversos movimentos sociais que lutam pelo direito a saúde, educação, moradia, passe-livre e por mais democracia. Para o professor e ativista de Direitos Humanos, Leonardo Cisneiros, o direito à cidade significa não apenas usufruir dessa cidade, mas também participar de sua construção. “A cidade é uma obra coletiva”, disse o integrante do Movimento Ocupa Estelita, que surgiu no Recife, em 2012, contra a privatização do cais José Estelita, uma área de 100 mil metros quadrados estrategicamente situada às margens do Rio Capibaribe. “Nossa desobediência, ao ocupar o terreno, fez com que o projeto das empreiteiras não fosse cumprido”, resumiu. “Precisamos lutar contra um certo analfabetismo urbanístico e deixar a cidade acontecer à revelia”.
 

Saúde e megaeventos

O processo acelerado de urbanização das cidades e as grandes intervenções urbanas provocadas pelos megaeventos também deixam marcas na saúde da população. Para o pesquisador da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) Rodrigo Machado Vilani, as grandes intervenções urbanas ainda privilegiam opções mercadológicas em detrimento da melhoria da qualidade de vida da população, provocando o adiamento de ações governamentais na área de saneamento, por exemplo. Ao se referir à Olimpíada do Rio, ele diz que o atraso nas obras de saneamento do Eixo Olímpico e mais um fracasso em relação à despoluição da Baía de Guanabara prejudicam qualquer discurso que se proponha otimista em relação a um legado para saúde e meio ambiente. 
 
Rodrigo lembra ainda o descaso com o meio ambiente, ao citar a construção de um campo de golfe dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA), no Parque Natural Municipal de Marapendi. “Estas situações reforçam a ideia de que as intervenções possuíram uma clara orientação mercadológica e, fora dessa lógica, aspectos como saúde e meio ambiente foram relegados a segundo plano”, disse. Para superar a lacuna entre o planejamento do ambiente urbano e a melhoria das condições de saúde da população, Rodrigo considera que as decisões políticas não podem se dar fora de um modelo participativo e democrático. “Transparência e participação no processo, abertura ao diálogo com a sociedade e as instituições de ensino e pesquisa, substituição de cargos e opções políticas pela adoção de prevenção e precaução na definição das ações são opções favoráveis para retirar o planejamento público do obscurantismo em que se encontra”.
 
Para Orlando Júnior, para que a relação com os megaeventos se dê de forma diferente, é preciso negar o modelo imposto por instituições como Fifa e Coi. Do contrário, segundo ele, esse modelo vai promover processos de mercantilização e de difusão neoliberal em qualquer cidade que acolha esses megaeventos. “Para fazer diferente, é necessário adotar a transparência, ouvir as pessoas, discutir prioridades, utilizar os instrumentos de participação disponíveis”, argumentou. “Nós perdemos a oportunidade de fazer isso”. Mas ele ainda acredita na construção de uma cidade mais justa, colaborativa e democrática. Como no frescobol.
Autor: 
Ana Cláudia Peres

Cidade, Olimpíada e Saúde

Revista Radis editorial

Megaeventos esportivos são usados como pretexto para impor modelos de reordenamento urbano desde 1992, na Olimpíada de Barcelona, na Espanha. Foi assim em 2014, durante a Copa da Fifa em várias capitais do Brasil. E o mesmo ocorre agora, com a Olimpíada do Rio de Janeiro.

As alardeadas transformações e modernizações para os jogos olímpicos legaram ao carioca uma cidade ainda mais excludente, desigual e entregue à especulação imobiliária. O modelo de ocupação e mobilidade implantado é voltado para os negócios, em detrimento do interesse e da qualidade de vida da maioria da população, dos transportes de massa e de soluções socioambientais sustentáveis, atestam pesquisadores, movimentos sociais e moradores ouvidos pelas repórteres Ana Cláudia Peres e Liseane Morosini.


Moradias, empregos e vidas estão em risco ou foram perdidas num processo truculento de segregação, que o urbanista Carlos Vainer caracteriza como “cidade de exceção”, numa referência à suspensão de direitos e garantias constitucionais. O pesquisador Orlando dos Santos Junior evoca o direito à cidade e lembra que o número de habitações vazias nas metrópoles brasileiras equivale ao número de pessoas sem teto. Em desvantagem na disputa pelo espaço urbano, há um outro projeto de cidade, mais humana, saudável e solidária, destinada às pessoas, em que o interesse público fala mais alto, registra a matéria de capa.

Às vésperas da Olimpíada, o editor Adriano De Lavor entrevistou grandes desportistas e profissionais de Educação Física sobre os impactos à saúde provocados por treinamentos exaustivos, lesões, dedicação extrema e pressão psicológica a que estão submetidos os atletas de alto rendimento. Outrora amadores movidos por aptidão genética e perseverança, os atletas atuais são profissionais de carreira extremamente desgastante e frequentemente curta, a serviço de um espetáculo bilionário, que nem sempre lhes recompensa.

Nos esportes olímpicos ou no futebol profissional, a maioria permanece mal remunerada ou fica pelo caminho com suas frustrações e sequelas. A cultura da superação de limites a qualquer custo, além dos danos que causa no ambiente olímpico, dissocia a atividade física da saúde, quando reproduzida nas práticas esportivas de pessoas comuns.

A comunidade da saúde pública está indignada com as ameaças do governo interino contra o SUS e demais serviços públicos. Da mesma forma, enxerga na subtração de direitos trabalhistas e previdenciários — ver matéria sobre o mito do déficit na previdência — um ataque à saúde dos trabalhadores.

Pesquisadores alertam para os riscos do benzeno, substância cancerígena presente na extração e no refino do petróleo e na produção de aço. Ele entra em contato com o corpo via respiração, como na inalação pela manipulação de gasolina e solventes, ou por contato direto com a pele.

O ex-presidente da Fiocruz e atual presidente do Conselho Político e Estratégico de Bio-Manguinhos, Akira Homma, relembra, em entrevista, a epidemia de meningite ocultada pela ditadura na década de 1970 e analisa as tendências na produção de imunobiológicos e vacinas.

Autor: 
Rogério Lannes Rocha
Editor-chefe e coordenador do programa Radis

Ibama decide arquivar processo de licenciamento da usina de Tapajós

Publicado em agosto 5, 2016 por



Localização proposta para a UHE São Luiz do Tapajós. Mapa no blogue de Telma Monteiro
Localização proposta para a UHE São Luiz do Tapajós. Mapa no blogue de Telma Monteiro

O Ibama decidiu ontem (4) arquivar o processo de licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, no Pará. De acordo com o despacho, assinado pela presidente do instituto, Suely Araújo, o projeto e o estudo de impacto ambiental não têm conteúdo necessário para análise da viabilidade ambiental do empreendimento.


A decisão leva em conta uma recomendação da Comissão de Avaliação e Aprovação de Licenças Ambientais do Ibama, formada pelos sete diretores do instituto, que decidiram de forma unânime que o processo deveria ser paralisado.

O arquivamento também foi recomendado pela Diretoria de Licenciamento Ambiental do órgão, que argumentou que faltam informações nos estudos de impacto ambiental sobre os ecossistemas da região e os impactos socioeconômicos do empreendimento.

A decisão do Ibama também considerou ofício da Fundação Nacional do Índio (Funai), indicando impedimentos legais e constitucionais ao licenciamento ambiental do empreendimento, em razão do componente indígena.

Remoção
Segundo a Funai, a necessidade de remoção das aldeias indígenas torna o projeto inconstitucional, já que a Constituição de 1988 veda expressamente a remoção de povos indígenas de suas terras.

O cancelamento do licenciamento da usina foi solicitado pelo Ministério Público Federal no Pará, que entende que o empreendimento alagaria três aldeias do povo Munduruku, na terra indígena Sawré Muybu. Em abril deste ano, o Ibama já havia suspendido a licença ambiental do projeto.

O despacho da presidência do Ibama será comunicado à Eletrobras, que realizou os estudos de impacto ambiental para o empreendimento, com abertura de prazo para recurso.
Por Sabrina Craide, Agência Brasil, in EcoDebate, 05/08/2016

[CC BY-NC-SA 3.0][ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à Ecodebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]

Preocupações de um conservador de nascentes e córregos, artigo de Osvaldo Ferreira Valente


Publicado em agosto 5, 2016 por Redação


[EcoDebate] Venho reclamando, há tempos já, por meio de artigos, de entrevistas e de livros publicados, a falta de preocupação com os fundamentos hidrológicos aplicados a pequenas bacias hidrográficas, formadoras e mantenedoras de nascentes e córregos.


É a hidrologia de pequenas bacias, que precisa ser incentivada no país. Com o anúncio do programa Novo Chico, visando revitalizar o rio, retornam os conceitos gerais de conservação de nascentes, muito centrados nos reflorestamentos ciliares. As preocupações (ou reflexões) que passarei a fazer decorrem da percepção de que as tecnologias disponíveis no País para revitalização da capacidade de produção de água são geralmente adotadas sem levar em conta as especificidades dos ecossistemas hidrológicos das bacias a serem trabalhadas. 



1) Em razão da obrigatoriedade de fazer licitações para execução de quaisquer atividades de conservação no âmbito dos Comitês e das Agências de Bacias, os termos de referências das chamadas ficam concentrados nas especificações de números de barraginhas, de terraços, de áreas a serem reflorestadas etc. 



Exigem espaçamentos, diâmetros, georreferenciamentos e chegam, até mesmo, a pedir explicações sobre a maneira com que os moirões vão ser fixados no solo. Mas quando vamos ver os fundamentos, a descrição de solos é muito genérica e não há referências a velocidades de infiltração ou a ocorrências de camadas adensadas próximas das superfícies. Sequer são mencionadas, explicitamente, as possibilidades de infiltração para recarga de aquíferos. Julga-se, como suficiente, a diminuição da erosão do solo, o que é um erro, pois as enxurradas poderão estar sendo simplesmente substituídas por escoamentos subsuperficiais e os aquíferos não serão abastecidos. 


Sem conhecimento da hidrologia da pequena bacia, as estruturas de conservação poderão ser mal dimensionadas, ou locadas erradamente. Por exemplo, barraginhas e caixas de captação de enxurradas não podem ser locadas erraticamente, pois se colocadas próximas de nascentes e córregos terão seus armazenamentos drenados rapidamente ( ver artigo “Sobre barraginhas, terraços e caixas de captação de enxurradas”, com referência no final deste artigo). 



Cuidado, também, com fórmulas que usam coeficientes de correção não compatíveis com os comportamentos hidrológicos da pequena área. Os modelos matemáticos podem ser belíssimos, mas acabarem produzindo péssimos resultados pelo uso de coeficientes inadequados. Pequenas bacias hidrográficas são mais bem entendidas com o uso de modelos físicos, facilitando o trabalho de quem milita no campo e precisa entender o que está acontecendo ao seu redor. Qualidade de observação e acúmulo de prática são características fundamentais para quem se dispõe a trabalhar na produção de água; 




2) Nas propostas de reflorestamentos, não há nenhuma referência à eficiência de sistemas radiculares na exploração do perfil do solo. Se a capacidade de armazenamento de água no perfil do solo for, por exemplo, de 1mm/cm, as raízes explorarem até 100cm de profundidade e ele estiver com 50% de deficiência de umidade, as chuvas precisarão repor os 50mm de deficiência antes de começarem a abastecer o aquífero subjacente. Melhor, então, que as raízes explorassem apenas 50cm. 


Quanto aos reflorestamentos ciliares, há um erro em superestimar suas ações em prol da quantidade de água. Reconheço, é claro, os benefícios ambientais das matas ciliares, o que justifica a sua existência, mas eles não contemplam aumentos de vazões de nascentes e córregos, em quaisquer situações Pelas exigências do Código Florestal, as áreas ciliares protegidas vão ficar em torno de 10% das superfícies das pequenas bacias, o que é muito pouco para garantirem suprimento de aquíferos. 



Além do mais, como estão muito próximas de nascentes e córregos, os volumes nelas infiltrados serão drenados rapidamente, não ficando armazenados para garantirem vazões de estiagens. Mas o encantamento com as matas ciliares é tão grande e arraigado que já virou dogma ambientalista. Aumentos de vazão de córregos debitados a reflorestamentos ciliares recentes, são, na maioria dos casos, provenientes de práticas mecânicas também implantadas; estas, sim, capazes de responder rapidamente. 



Parece haver, portanto, uma exagerada preocupação em prestigiar as matas ciliares, mesmo que, no caso de quantidade de água, elas estejam agindo ao contrário, pelo efeito oásis, por exemplo. Efeitos positivos na produção de quantidade de água só virão em longo prazo e sempre na dependência das condições regionais em que se encontram as pequenas bacias; dos entornos, portanto. Para entender melhor isso, será bom que o leitor se disponha a ler os artigos “Mata Ciliar – parte I: da metragem ao sonho”, “Mata Ciliar – parte II: efeito oásis e consumo de água”, “A vegetação, o solo e a água em pequenas bacias hidrográficas” e “Floresta e produção de água”, com referências no final deste artigo;



3) Não é suficiente a informação apenas dos totais anuais de precipitação, pois como as chuvas precisam ser confrontadas com as velocidades de infiltração de água no solo, há necessidade de se conhecer as intensidades mais comuns. As tecnologias precisam ser planejadas para, se possível, reter e infiltrar os volumes recebidos em tais intensidades. Ou, pelo menos, estabelecer as proporções que poderão ser retidas. Em regiões onde as chuvas são concentradas em pequenos períodos ao longo do ano, deve ser redobrada a preocupação em reter o máximo possível dos volumes precipitados; 



4) As ações de conservação, mesmo quando fazem referências a princípios hidrológicos, usam os aplicáveis a grandes bacias e que não são suficientes para explicar os comportamentos de pequenas (aquelas de ordem 1, 2, preferencialmente, ou no máximo 3, em áreas muito drenadas). Nestas há uma prevalência de tempo de escoamento sobre a superfície em relação ao escoamento nos leitos dos córregos, possibilitando entender as relações solo/água/planta e agir para que elas favoreçam os aquíferos subterrâneos. Esses aquíferos são as caixas d’água que garantem os fluxos das torneiras (nascentes) e das tubulações (córregos). 



Aproveito para chamar a atenção para um movimento que anda se espalhando pelo país e que propõe tecnologia para conservar nascentes (há muitos vídeos no YouTube). Trata-se, na verdade, de simples conserto da torneira, com sua limpeza e proteção. Nada com relação à garantia de abastecimento de água na caixa (aquífero). E o pior é que há muitas organizações e entidades embarcando nessa canoa furada, demonstrando desconhecimento do processo de produção de água das bacias hidrográficas. Não custa insistir que nascentes e córregos são produtos das interações entre as chuvas e os componentes físicos e bióticos distribuídos por toda a superfície das pequenas bacias hidrográficas; 




5) A grande concentração de nascentes e córregos está em propriedades rurais, maioria pequenas, indicando que as tecnologias devem chegar a elas pela metodologia de extensão rural. Não funciona a ideia de contratar uma empresa para executar as tarefas e outra para fiscalizar. Quando o canteiro de obras é desmanchado, começa o desmanche, também, dos equipamentos implantados, pois as Agências e os Comitês não estão aparelhados para dar assistência pós-execução.. Os procedimentos de educação ambiental exigidos nos termos de referências são meros paliativos, pois não estão apropriados às culturas das comunidades. Além disso, não são palestras e poucos encontros que vão mudar comportamentos. O trabalho precisa de consolidação ao longo do tempo, o que só pode ser feito por quem tem o campo como trabalho contínuo e permanente. As preocupações expostas ficam mais acentuadas quando se pensa em estabelecer o “Pagamento por Serviços Ambientais”; 



6) Todos os estados, e muitos municípios, possuem uma ou mais instituições ligadas ao campo e que poderiam ser envolvidas nos trabalhos de conservação. Em Minas Gerais, por exemplo, que conheço melhor, há a Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) , a Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais) e o IEF (Instituto Estadual de Florestas), que já atuam em todo o estado e que poderiam formar uma força-tarefa para trabalhar com os Comitês e Agências ( por meio de convênios e contratos dentro do programa Novo Chico, por exemplo). Esta força-tarefa voltaria para a sala de aula para discutir hidrologia e manejo de pequenas bacias e sistematizar procedimentos de atuação, evitando que divergências e vaidades corporativas possam vir a prejudicar as atuações no campo. 



A força-tarefa passaria a ser responsável pelo planejamento, pelo acompanhamento da execução e pela consolidação das práticas de conservação. Assim, quando o executor de uma atividade específica (licitada) desmontar o canteiro de obras, a força-tarefa estará presente para garantir o funcionamento das estruturas implantadas. Acho isso tão óbvio que há momentos em que penso fazer papel ridículo em levantar o assunto.



Também acho óbvia a perda de tempo com a criação de comissões formadas com ajuntamento de muitas instituições, um representante daqui, outro dali, mais um de acolá, etc., etc. O resultado são reuniões e mais reuniões, desfiles de vaidades e pronto. Como colegiados, bastam os Comitês de Bacias e os Conselhos de Recursos Hídricos. Ainda tenho ojeriza com a criação de programas e mais programas, pois no País temos a mania de criar um novo programa para encobrir o fracasso de outro, ou dar uma nova denominação para velhas demandas; 



7) É importante que a contabilidade de água da bacia seja feita, confrontando valores de precipitações com os das vazões dos córregos drenantes ( ver artigo “UTI ambiental: contabilidade de água em pequenas bacias hidrográficas”, com referência no final deste artigo). Também, sempre que possível, pesquisar um pouco da história do comportamento do córrego ao longo dos últimos anos. Moradores antigos do lugar sempre terão alguma coisa interessante para contar. Com tais análises, é possível estabelecer metas para a vazão desejada nos anos futuros e planejar as atividades com esses objetivos. 




Daí a importância de medições contínuas dos parâmetros meteorológicos e hidrológicos para o acompanhamento das reações. Fico incomodado com avaliações de resultados onde predominam qualificativos como: melhorou, aumentou, os resultados são excelentes, etc. Quero sempre saber de quanto foi a melhora, o aumento ou o resultado considerado excelente. Por exemplo, a vazão do córrego era de 80 L/min e passou, depois de dois anos, para 104 L/min, com aumento de 30%. Quem vai fazer esse acompanhamento? Alguma instituição da força-tarefa.



Publicações do Autor (relacionadas com o tema)


1) Artigos no Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br); podem ser encontrados também no Google:
– UTI para nossas águas
– UTI ambiental: diagnóstico da água I
– UTI ambiental: diagnóstico da água II
– UTI ambiental: diagnóstico da água III
– UTI ambiental: contabilidade de água em pequenas bacias hidrográficas
– UTI ambiental: práticas de manejo de bacias hidrográficas I
– UTI ambiental: práticas de manejo de bacias hidrográficas II
– UTI ambiental: revitalização de bacias hidrográficas I
– UTI ambiental: revitalização de bacias hidrográficas II
– Mata Ciliar – parte I: da metragem ao sonho
– Mata Ciliar – parte II: efeito oásis e consumo de água
– A vegetação, o solo e a água em pequenas bacias hidrográficas
– Floresta e produção de água
– Sobre barraginhas, terrações e caixas de captação de enxurradas


2) Livros (Editora Aprenda Fácil; www.afe.com.br)
– Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas
– Das chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia


3) Monografia (disponível por e-mail)
– Fundamentos hidrológicos da recarga artificial de aquíferos de pequenas bacias
hidrográficas


*Osvaldo Ferreira Valente , Articulista do Portal EcoDebate, é engenheiro florestal, professor titular aposentado da Universidade Federal de Viçosa e especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas (valente.osvaldo@gmail.com)

in EcoDebate, 05/08/2016
"Preocupações de um conservador de nascentes e córregos, artigo de Osvaldo Ferreira Valente," in Portal EcoDebate, ISSN 2446-9394, 5/08/2016, https://www.ecodebate.com.br/2016/08/05/preocupacoes-de-um-conservador-de-nascentes-e-corregos-artigo-de-osvaldo-ferreira-valente/.

[CC BY-NC-SA 3.0][ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à Ecodebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]