Uma jovem jararaca [i]Bothrops jararaca[/i] na reserva de Mata Atlântica do
Uma jovem jararaca [i]Bothrops jararaca[/i] na reserva de Mata Atlântica 

Gosto de serpentes e uma das maneiras mais fáceis de arrumar briga ou uma demissão por justa causa comigo é matar uma. Nunca entendi o medo que a maioria das pessoas tem. Talvez seja resultado de educação torta, do tipo mãe ou padre estragando as crianças. Ou um primitivismo inato, circuitos neuronais herdados de nossos ancestrais primatas (veja aqui) afetando o julgamento.



O fato é que serpentes não são apenas bonitas (algumas estão no Olimpo da beleza animal). Elas são fascinantes. E, para quem precisa esse argumento para valorizar algo, salvaram e salvam incontáveis vidas.


As 29 (até agora) espécies de jararacas, cotiaras, urutus & cia encontradas no Brasil formam um grupo de espetaculares serpentes amplamente distribuídas no país. Na maioria predadoras de emboscada, há espécies de jararacas arborícolas que capturam pererecas, lagartos e aves, e há jararacas terrestres que comem rãs, calangos e roedores. Uma espécie, a jararaca-de-alcaltrazes Bothrops alcatraz, endêmica da ilha de Alcatrazes (SP) é uma forma mini que se alimenta basicamente de lacraias. A evolução insular produz coisas exóticas.


Várias espécies de jararacas estão ameaçadas de extinção, principalmente pela destruição de seu habitat. Estas incluem Bothrops muriciensis, que teve o azar de ser restrita à Mata Atlântica de Alagoas, e a bela mas pouco conhecida cotiara Bothrops cotiara, que tem o azar de ser uma espécie da floresta com araucária e matas interiores entre o sul de SP e o RS.


A espécie mais comum é a famosa jararaca Bothrops jararaca, uma serpente muito bem sucedida encontrada da Bahia ao Rio Grande do Sul e partes adjacentes da Argentina e Paraguai em áreas que são ou foram de Mata Atlântica (incluindo as florestas semidecíduas do interior e matas ciliares) entre o nível do mar e mil metros de altitude.


Jararacas alimentam-se de anfíbios e lagartos quando jovens e usam a ponta clara da cauda, que imita um verme, para atrair suas presas. É um comportamento muito interessante de observar. Conforme crescem as serpentes passam a consumir presas maiores, especialmente roedores. Jararacas adoram ratos e ajudam no seu controle.


Isso faz com que jararacas apreciem a proximidade de áreas onde humanos sustentam populações de ratos. Jararacas continuam frequentes mesmo no município de São Paulo, onde pelo menos 50 espécies de répteis foram recentemente extintas e se adaptam a mosaicos de áreas agrícolas e capoeiras.


Uma arma secreta das jararacas é um par de sensores térmicos localizados na face, entre as narinas e os olhos. Essas fossetas loreais captam a radiação eletromagnética na faixa do infravermelho emitida por animais de sangue quente da mesma forma que os olhos captam a radiação eletromagnética na faixa da luz visível, mas com sensibilidade para perceber diferenças de >0.001 °C!


A informação vinda das fossetas é processada na mesma área do cérebro que a vinda dos olhos. É possível que as jararacas vejam o mundo de forma parecida que o Predador. E para quem gosta de batalhas épicas, veja isso.


A natureza antecipa a ficção.


O veneno das jararacas tem ação anti-coagulante, proteolítica e vasculotóxica. Ou seja, destrói os vasos sanguíneos e provoca hemorragias, ao mesmo tempo que transforma a carne da presa em papinha. O que ajuda muito na hora da digestão. Tente engolir um rato inteiro sem mastigar, como elas fazem.


Um estudo que incluiu 3.139 casos de picadas por serpentes do gênero Bothrops entre 1981 e 1990 contabilizou 21 amputações e 9 óbitos (0,3%) como resultado dos acidentes. Jararacas matam muito menos que calçadas mal conservadas ou maionese estragada, para não mencionar nossos políticos (compare os hospitais públicos com os estádios da Copa).


E, definitivamente, não vão atrás das pessoas para prejudica-las, ao contrário dos políticos.
Andando no mato já me descobri várias vezes com uma jararaca próxima a meu pé sem qualquer tentativa de ataque. Quando irritadas as jararacas vibram a cauda, o que faz um barulho característico no folhiço (elas avisam que não querem ser pisadas), e se pressionadas dão botes de advertência enquanto recuam em busca de segurança. Não somos presas e sim ameaças, e as serpentes não querem contato com a gente.


Mas também estive com um amigo quando ele foi picado por uma Bothrops leucurus irritada por sacudirmos (sem saber) a galharia onde ela repousava... O resultado foi dor, quatro dias de hospital e uma cicatriz. A conclusão é que é melhor usar perneiras e respeitar o espaço pessoal dos bichos. Nada de ficar pegando neles, como alguns gostam.


Venenos e medicamentos
Venenos são coquetéis de substâncias e em 1965 o pesquisador do Instituto Butantan e depois presidente da SBPC, Sérgio Henrique Ferreira, publicou um trabalho onde demonstrou, no veneno da jararaca, a presença de uma substância que inibe as angiotensinas (substâncias que elevam a pressão arterial e potencializa a bradicinina, um vasodilatador que mantém a pressão baixa.


Esse trabalho levou a mais pesquisas que deram origem ao captopril e seu sucessor, o enalapril, talvez os mais populares medicamentos utilizados para controle da hipertensão.
Vale lembrar que a hipertensão é um dos principais fatores de risco para a ocorrência de acidente vascular cerebral (AVC), enfarte agudo do miocárdio e aneurisma arterial (p. ex. aneurisma da aorta), além de insuficiência renal crônica e insuficiência cardíaca.



A hipertensão é a doença crônica que mais demanda os sistemas de saúde, com grande impacto social e econômico. Em 2004, 17 milhões de brasileiros tinham hipertensão e 70% eram tratados através do SUS. Uma porção considerável dos hipertensos estaria morta ou inválida se o veneno da jararaca não tivesse sido estudado.


Se você é hipertenso é muito provável que esteja bem por causa da Bothrops jararaca e da pesquisa sobre seu veneno. Se não fosse por isso você poderia ser um enfartado, um repolho humano vítima de um AVC ou estar morto.


Pense na dívida que você tem com esses animais pouco amados antes de dar uma paulada numa serpente, destruir sua casa ou achar que pesquisa científica em assuntos esotéricos como o funcionamento do veneno de uma cobra (ou aranha, escorpião ou água-viva) é coisa de nerds que não têm o que fazer.