sábado, 6 de janeiro de 2024

 

 O sistema financeiro está bancando a destruição do planeta

Cristiane Mazzetti e Syahrul Fitra

22 de novembro de 2023 • Leitura de 5 minutos •  0 Comentários

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Para combater as crises do clima e da biodiversidade, precisamos alterar os fluxos financeiros mundiais: o dinheiro deve parar de ir para a destruição e começar a financiar a regeneração

https://www.greenpeace.org/static/planet4-brasil-stateless/2023/11/b82d5f9b-gp0stsncm_medium_res-1024x683.jpgNo Brasil, o avanço do agronegócio sobre ambientes naturais, como o Cerrado e a Amazônia, segue forte graças ao fluxo financeiro que segue injetando dinheiro nesse modelo de produção, sem que os riscos sejam seriamente avaliados pelas instituições financeiras nesse processo. (© Marizilda Cruppe / Greenpeace)

Já está mais do que evidente que o mundo está enfrentando múltiplas crises no que diz respeito ao clima e ao meio ambiente. Somos testemunhas diretas dessa destruição e do sofrimento que ela causa em nossos respectivos países, Brasil e Indonésia, dois países que abrigam ecossistemas vitais para o equilíbrio ecológico do nosso planeta.

Acompanhamos com preocupação, determinação e esperança os esforços internacionais – discussões multilaterais – para proteger e restaurar a natureza. Como parte dos esforços para enfrentar a crise da biodiversidade, quase 200 governos assinaram o Marco Global da Biodiversidade (GBF) em Dezembro de 2022, durante a 15a Convenção de Biodiversidade Kunming-Montreal. Um dos objetivos deste acordo é manter, melhorar e restaurar a integridade e resiliência dos ecossistemas.

Para que este objetivo seja alcançado, precisamos parar imediatamente a destruição da natureza e permitir a recuperação destes ecossistemas. Isto deve aplicar-se não apenas a florestas tropicais como a Amazônia, a Bacia do Congo ou às florestas na Indonésia, mas também a outros ecossistemas essenciais, como o Cerrado e o Pantanal. Esta ação produziria o maior impacto no menor tempo possível. Mas como fazer isso?

Uma reforma drástica do sistema financeiro é urgente

https://www.greenpeace.org/static/planet4-brasil-stateless/2023/11/c0623640-gp1svodw_medium_res-1024x683.jpgÁrea desmatada e queimada já recebe gado em Porto Velho, Rondônia. Atualmente, atividades como essa conseguem acessar financiamentos e investimentos sem grandes impedimentos. (© Christian Braga / Greenpeace)

Os compromissos para enfrentar as crises climáticas e de biodiversidade são diariamente minados por um sistema financeiro que prioriza o lucro de empresas poluidoras e de indústrias e projetos que aceleram a degradação ambiental e a extinção de espécies. Bilhões de reais continuam a ser investidos incessantemente em atividades destrutivas.

Portanto, uma reforma drástica do sistema financeiro é fundamental para enfrentar a perda contínua de espécies e ecossistemas, e para diminuir as emissões de gases de efeito estufa. Enquanto o dinheiro continuar a ser direcionado para a expansão das atividades econômicas que levam à destruição da natureza, não seremos capazes de cumprir nenhum dos compromissos assumidos com o nosso planeta (Acordo de Paris e Marco Global da Biodiversidade).

No Marco Global da Biodiversidade, os governos se comprometeram (meta 14) a garantir que todos os fluxos financeiros estariam alinhados com os objetivos e metas de conservação da biodiversidade antes de 2030. Isto significa que os governos precisam controlar melhor os fluxos de dinheiro público e privado.

Os governos precisam melhorar as regulações financeiras existentes e desenvolver novas regras que proíbam os bancos e outras instituições financeiras de direcionar recursos para atividades que prejudiquem a biodiversidade no mundo. Isso deve ocorrer associado a processos mais transparentes e um cumprimento rigoroso das regras, para impedir a destruição da natureza e responsabilizar aqueles que não as cumprirem.

Trilhões de dólares continuam a financiar a destruição de ecossistemas naturais

https://www.greenpeace.org/static/planet4-brasil-stateless/2023/11/6167661c-gp0stxkg8_medium_res-1024x683.jpgAtivistas do Greenpeace África realizaram um protesto para demandar que companhias de seguros parem de apoiar a crise climática. Petrolíferas querem perfurar a floresta tropical do Congo, destruindo comunidades e biodiversidade. Nos banners lê-se “Não garanta a destruição da floresta tropical” e “Pergunte-me por que não quero petróleo na floresta tropical do Congo”. (Greenpeace)

Desde a seca histórica na Amazônia até as chuvas torrenciais no Sul e outros eventos extremos no resto do Brasil e no mundo, as crise climática e de biodiversidade já estão impactando milhões de pessoas, mas os governos e o setor privado gastam cerca de 3,1 bilhões de dólares por ano em subsídios e investimentos em setores problemáticos e prejudiciais ao meio ambiente, como a pecuária, a exploração de madeira e de óleo de palma, levando à destruição da natureza e a violações dos direitos humanos.

Precisamos de regulações  que proíbam bancos, gestoras de investimento, entidades de previdência e outras instituições financeiras de financiarem e investirem em fazendas, projetos e empresas que prejudicam os ecossistemas e as comunidades locais que deles dependem. Povos indígenas e ativistas ambientais continuam a ser atacados, apesar do trabalho vital que realizam para proteger o planeta e combater a crise climática.

Coletivamente, os gastos dos governos mundiais direcionados à conservação da biodiversidade são estimados em apenas 154 mil milhões de dólares por ano, enquanto as estimativas do total de subsídios e outros incentivos perversos à economia da destruição são muito mais elevadas, como já mencionado. O redirecionamento destes investimentos poderia gerar um financiamento importante para as ações que o Marco da Biodiversidade reconhece como vitais para a conservação da biodiversidade. Eles também poderiam garantir uma transição justa em setores como a agricultura industrial e madeireira.

Enquanto os governos preparam os seus planos para implementar os compromissos que assumiram no Quadro Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal, demandamos a adoção de regras para o setor financeiro, controlar os fluxos financeiros e parar e reverter a destruição dos ecossistemas.

Um crescente movimento popular contra os governos e instituições que destroem a natureza

https://www.greenpeace.org/static/planet4-brasil-stateless/2023/11/1c92d55f-gp0stxyl4_medium_res-1024x683.jpgAtivistas do Greenpeace Holanda e da organização Extinction Rebellion bloquearam a entrada da sede do Rabobank, em protesto contra sua devastadora política de financiamento do agronegócio, que vem levando a destruição de ambientes naturais em varias partes do mundo. (© Marten  van Dijl / Greenpeace)

Há centenas de anos os povos originários e as comunidades tradicionais vem lutando por seus direitos e contra a destruição da natureza. Nas últimas décadas, o movimento popular internacional para defender os ecossistemas naturais vem se fortalecendo, reunindo milhões de pessoas.

Em outubro, centenas de ativistas ambientais bloquearam os escritórios do Rabobank na Holanda e exigiram que o banco deixasse de financiar o agronegócio, e pagasse pelos danos que já foram causados pelos seus investimentos. 

O Rabobank, um banco holandês, lucrou milhões financiando empresas que destroem a natureza ao longo de muitos anos, não só no seu país de origem, mas também em outros países, como o Brasil e Indonésia.

Recentemente, muitos outros bancos e instituições financeiras que estão bancando a destruição do nosso planeta têm sido alvo de relatórios e de ações em muitos países em todo o mundo, incluindo JP Morgan, Barclays, Standard Chartered e Deutsche Bank.

É impossível proteger e restaurar os ecossistemas naturais sem enfrentar um sistema  financeiro que viabiliza o desenvolvimento de atividades destrutivas e poluidoras e se mantém impune. Os governos devem apresentar planos sérios e com prazos para reformar o sistema financeiro. E para fazer esse enfrentamento e transformar essa realidade será preciso muita pressão da sociedade 

Cristiane Mazzetti e Syahrul Fitra são campaigners no Greenpeace Brasil e Greenpeace Indonésia respectivamente.


quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Brasil promove “leilão do fim do mundo” e ignora clamor por fim dos fósseis

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Brasil promove “leilão do fim do mundo” e ignora clamor por fim dos fósseis

Megaoferta inclui blocos em áreas mais sensíveis, como Amazônia e Fernando de Noronha

12.12.2023 - Atualizado 13.12.2023 às 21:31 | 

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DO OC – A posição contraditória do Brasil em relação ao combate às mudanças climáticas se evidencia às vésperas  de um enorme leilão para a exploração de combustíveis fósseis no país marcado para esta quarta-feira (13/12), ao final da 28° conferência do clima (COP28). São oferecidos 602 blocos e uma área com acumulação marginal, lugar inativo onde a produção foi interrompida ou nem iniciada, no 4° Ciclo da Oferta Permanente de Concessão (OPC). Outros cinco blocos no pré-sal, fronteira de exploração já consolidada no Brasil, serão ofertados na mesma data em regime de partilha.

O leilão é problemático não apenas por promover a expansão da produção de combustíveis fósseis quando o planeta precisa urgentemente reduzi-la. Afinal, as emissões de gases poluentes que intensificam o aquecimento global vêm principalmente do uso de combustíveis fósseis. “A ciência climática é clara: não podemos mais abrir novas áreas de exploração de combustíveis fósseis”, ressalta Délcio Rodrigues, diretor-executivo do Instituto ClimaInfo.

O outro ponto de destaque é o impacto negativo em áreas ambientalmente sensíveis. “O leilão possui ao menos 77 blocos com violações das diretrizes ambientais da ANP [Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis]”, comenta Juliano Araújo, diretor-presidente do Instituto Arayara. A organização publicou no dia 6 de novembro um estudo que detalha as sensibilidades das áreas que serão leiloadas.

As centenas de blocos da OPC estão divididos em nove bacias sedimentares e 33 setores em terra e mar. Ambientalistas têm chamado a oferta de “leilão do fim do mundo”. No entanto, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, celebrou a confirmação do leilão em outubro. Na época, o ministro que quer transformar o país no 4° maior produtor de combustíveis fósseis – atualmente, o Brasil ocupa a 9° posição – argumentou que os leilões vão gerar mais investimentos, empregos e arrecadação que serão revertidos em benefícios para a população. “A transição energética já é uma realidade trabalhada em nosso país, mas ainda temos de buscar novas reservas que são viabilizadas com a Oferta Permanente”, completou.

O discurso de Silveira é rebatido por especialistas. “O Brasil já possui reservas mais que suficientes para atender a demanda nesta fase de transição para fontes renováveis. Temos tudo para promover inovação se pensarmos sob o aspecto socioambiental”, diz Ricardo Junqueira Fujii, especialista em conservação do WWF-Brasil.

“No discurso de abertura da COP28, o presidente Lula afirmou que é hora do Brasil liderar pelo exemplo a agenda climática para pavimentar a descarbonização do planeta. A contradição fica evidente quando, um dia após o término do evento da ONU sobre mudanças climáticas, o governo brasileiro realiza o pior leilão de blocos de petróleo da história do país”, critica Enrico Marone, porta-voz da área de oceanos do Greenpeace Brasil. 


Riscos ambientais

A bacia sedimentar Potiguar é a líder em número de blocos ofertados nesta rodada. São 187 no total. Todos os onze blocos localizados em mar estão na Cadeia de Fernando de Noronha, uma grande cordilheira submarina de 1.300 quilômetros que se estende do norte do Ceará ao Rio Grande do Norte. A cordilheira é composta por 14 formações geológicas, e  as únicas cujo topo fica acima do nível do mar são as que abrigam a Reserva Biológica do Atol das Rocas e o arquipélago Fernando de Noronha, famoso pelo potencial turístico.

Segundo um ensaio encomendado e publicado pelo Observatório do Clima em 2021, a Cadeia de Fernando de Noronha é muito importante para os ecossistemas marinhos, pois peixes e animais invertebrados usam a estrutura para reprodução, alimentação e como berçário e abrigo. A região é importante também para tartarugas marinhas, cetáceos, tubarões, golfinhos e aves marinhas. O estudo ressalta que esse ecossistema é de extrema importância para a sustentabilidade socioeconômica da pesca artesanal do nordeste. 

A pesquisa conduzida por especialistas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) lembra que atividades de exploração de petróleo e gás causam impactos ambientais mesmo sem ocorrência de vazamentos. Um exemplo é a dispersão de contaminantes oriundos de fluídos da perfuração. Em 2021, os blocos foram ofertados na 17° rodada da ANP, mas não receberam lances. O Instituto Arayara está movendo ações na justiça para que blocos em áreas sensíveis sejam excluídos do leilão. Uma das ações é com foco na Cadeia de Fernando de Noronha.

Saiba mais sobre a Cadeia de Fernando de Noronha no vídeo a seguir:

A Bacia Potiguar faz parte da Margem Equatorial, área que tem início no litoral do extremo norte do Brasil com a Bacia Foz do Amazonas e tem atiçado a ambição de petroleiros. Em maio, o Ibama negou à Petrobras uma licença ambiental para explorar o bloco 59 da Foz do Amazonas. 

Os blocos em terra da Potiguar também são problemáticos. Análise feita pelo Instituto Arayara mostra que 123 blocos potiguares estão em área de recursos não-convencionais, o que significa que a extração deve ser feita por meio de fraturamento hidráulico (fracking).  A técnica, mais poluente, consiste na injeção de grandes quantidades de água, areia e produtos químicos para romper a rocha e fazer com que o combustível chegue à superfície. Com exceção das bacias de Santos e Espírito Santo, as outras também possuem áreas de recursos não-convencionais.

A análise do Instituto Arayara destaca uma preocupação por causa dos recursos hídricos da Bahia, especialmente na bacia do Recôncavo. A exploração de combustíveis fósseis pode contaminar águas subterrâneas utilizadas para abastecimento público e irrigação. 

O Brasil não possui uma lei federal que proíba a realização do fraturamento hidráulico. Há leis estaduais no Paraná e Santa Catarina e algumas municipais que vetam a prática. 

Na bacia do Amazonas, além do fracking, há preocupações com a proximidade dos blocos com terras indígenas e áreas de amortecimento de unidades de conservação e desmatamento. Segundo Luiz Afonso Rosário, especialista da 350.org, explorar combustíveis fósseis na Amazônia vai contra o discurso de desmatamento zero. “Eles [exploradores de combustíveis fósseis] têm entrado em mata fechada. Eles têm instalado estruturas imensas. Isso contraria o discurso. Além de tudo, é uma atividade indutora de apropriação de terras”, comenta, ao fazer referência à exploração de combustíveis fósseis já existente na Amazônia.

Um exemplo é o caso da região onde fica o campo do Japiim, que está classificado como área com acumulação marginal neste leilão. A Manifestação Conjunta publicada em 2022 que o colocou como apto para voltar a ser leiloado diz que o campo está em uma área isolada, em meio à floresta amazônica, próximo ao campo Azulão, onde a empresa Eneva já tem infraestrutura para exploração de gás natural. A Petrobras, que era a concessionária do Japiim, estava implementando um plano de recuperação de área degradada onde houve intervenção. 

De acordo com um estudo publicado no Jornal de Economia do Desenvolvimento em junho, a perda de vegetação em torno de 5 km2 ao redor de poços perfurados é em média 0,1 ponto percentual maior nos primeiros anos após a perfuração em comparação ao período anterior à exploração. O desmatamento crescente ocorre para a operação e abertura de vias de acesso.

A pesquisa avaliou 3.101 poços em terra em 55 países, incluindo o Brasil, e de 396 empresas. A imagem abaixo  mostra o desmatamento próximo a poços perfurados na Bacia Amazônica Ocidental entre 1985 e 2015. 

Os blocos, do norte ao sul do país, também podem impactar recifes de corais, manguezais, espécies ameaçadas de extinção e territórios quilombolas. A bacia do Espírito Santo, por exemplo, tem blocos que põem em risco áreas de Mata Atlântica, como o Parque de Itaúnas e a RESEX de Cassusurá, na região de Abrolhos, no extremo sul da Bahia. Além disso, tem  setores próximos aos territórios quilombolas de Linharinho, São Domingos e São Jorge, no Espírito Santo.

Na manhã desta quarta-feira, o Instituto Arayara promove uma mobilização no Rio de Janeiro contra o leilão. “A gente tem cobrado bastante coerência do governo brasileiro, que por um lado traz um discurso de desenvolvimento sustentável e de uma necessidade de transição energética, mas no dia seguinte do final da COP oferta 602 blocos e uma área marginal. São novas fronteiras [de combustíveis fósseis] que não precisam estar sendo expandidas”, diz Nicole Figueiredo, diretora-executiva do Instituto Arayara. (PRISCILA PACHECO)

 


“Começo do fim”: COP28 termina com decisão inédita sobre fósseis

 https://www.oc.eco.br/comeco-do-fim-cop28-termina-com-decisao-inedita-sobre-fosseis/

“Começo do fim”: COP28 termina com decisão inédita sobre fósseis

Sinalização, no entanto, é comprometida por fragilidade do texto final, que não menciona prazos ou garantia de financiamento para transição

13.12.2023 - Atualizado 18.12.2023 às 11:34 | 

DO OC – “Mas já?”

Os observadores que acompanhavam pelo telão da Expo 2020 a plenária final da COP28, em Dubai, levaram alguns segundos para entender o que havia acontecido. Às 11h12 da manhã desta quarta-feira (13), um minuto e quarenta e cinco segundos após a abertura da sessão, o presidente da conferência, Sultan Al-Jaber, bateu o martelo da adoção da decisão mais importante (e polêmica) do encontro: o Balanço Global do Acordo de Paris.  

A velocidade da marretada, imediatamente aclamada pelos delegados de mais de uma centena de países presentes em Dubai, surpreendeu por contrariar o ritual normal das conferências do clima. Em geral, o presidente da COP anuncia o item de agenda que será adotado e, antes de bater o martelo, tem de ouvir discursos de vários países – frequentemente discordando do texto. O fato de isso não ter ocorrido em Dubai foi ainda mais espantoso dado o conteúdo do texto em questão e a quantidade de drama em torno dele nas 48 horas anteriores: afinal, um dos itens de suas 21 páginas fala simplesmente em abandonar os combustíveis fósseis, os causadores da crise climática, que haviam passado 30 anos fora do gancho nas COPs.

Em seu parágrafo 28, o texto do Balanço Global convoca os países a “fazer a transição para longe dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos de uma maneira justa, ordenada e equitativa, acelerando a ação nesta década crítica, de forma a atingir emissão líquida zero até 2050, em linha com a ciência”.

É muito menos do que a “eliminação gradual justa, completa e adequadamente financiada dos combustíveis fósseis”  que a sociedade civil e as nações-ilhas exigiam para que o mundo tivesse a chance de limitar o aquecimento global em 1,5oC, ou o mais perto disso possível. Mas muito mais do que parecia possível na noite de segunda-feira, quando a presidência botou na mesa uma proposta de texto que as nações insulares rejeitaram como sua “sentença de morte”: um cardápio de opções que os países “poderiam” adotar para “reduzir gradualmente” as usinas a carvão mineral que não tivessem suas emissões compensadas ou sequestradas.

O bode colocado por Al Jaber na sala provocou revolta generalizada dos países e levou a intensas negociações que fizeram a COP terminar 24 horas e 12 minutos depois do prazo dado pela presidência, mas que produziram um pequeno milagre da diplomacia: sinalizar o fim da era fóssil numa conferência feita no quintal da Arábia Saudita, liderada pelo CEO de uma empresa de petróleo e com instruções muito claras da Opep (o cartel das nações petroleiras) para melar seu resultado.

As concessões aos fósseis no chamado “pacote de energia” de Dubai, porém, ameaçam a consolidação desse milagre: o texto fala, por exemplo, de “acelerar esforços para reduzir o carvão mineral não-mitigado”, o que não tem nenhuma diferença para o que o mundo já está fazendo e que já havia sido decidido em 2021, na COP de Glasgow; também promove tecnologias que ajudam a manter a produção e o consumo de fósseis, como a captura e armazenamento de carbono (CCS); por fim, num aceno gigantesco aos países petroleiros, o texto de Dubai defende “combustíveis de transição”, que incluem o gás fóssil. Além disso, ficaram de fora do texto final definições sobre prazos para a transição e também quanto ao financiamento dos países ricos para a ação climática dos países em desenvolvimento. 

As fragilidades foram apontadas por Samoa numa intervenção demolidora, que começou questionando o próprio processo de aprovação do texto final. Segundo Anne Rasmussen, negociadora-chefe da nação insular do Pacífico, a decisão foi tomada enquanto o grupo ainda estava do lado de fora da plenária, organizando suas intervenções e demandas. “Não queríamos interromper a ovação quando entramos na sala, mas ficamos confusos quanto ao que aconteceu. Aparentemente as decisões foram tomadas e as pequenas ilhas não estavam na sala”, afirmou. 

Houve o temor de que isso colocasse sob suspeição o consenso dos países, mas Rasmussen logo anunciou que iria apresentar a declaração que grupo de 39 nações insulares pretendia fazer antes da aprovação do texto. E começou apontando os limites do “reconhecimento da ciência” no texto final. “No parágrafo 26, não vemos qualquer compromisso ou mesmo convite às partes para que atinjam seus picos de emissões até 2025. Reivindicamos a ciência ao longo do texto, e mesmo nesse parágrafo, mas nos abstemos de aprovar ações concretas alinhadas ao que a ciência nos diz. Não é o bastante para nós reconhecer a ciência e, depois, fazer acordos que ignoram o que a ciência está nos orientando a fazer”, disse. 

A representante de Samoa criticou ainda trechos do parágrafo 28, como o recorte específico aos “sistemas energéticos” no subparágrafo que aborda a transição dos fósseis. A referência é vista como uma limitação, já que fósseis são utilizados em outros sistemas, como na indústria petroquímica, a produção de plásticos e medicamentos. “O foco exclusivo do parágrafo 28D nos sistemas energéticos é frustrante”, declarou. O parágrafo cita ainda o abatimento e remoção de carbono como “soluções”, consideradas por Rasmussen como distrações que podem “potencialmente nos fazer retroceder, ao invés de avançar”.

Simon Stiel, secretário-executivo da Convenção do Clima da ONU, tampouco se deixou levar pela autoindulgência de Al Jaber: “Embora não tenhamos virado completamente a página dos combustíveis fósseis em Dubai, isso é claramente o começo do fim”, disse. Celebrando comedidamente o resultado, Stiel destacou ainda a necessidade de um olhar para “o que vem a seguir”. Erguendo uma edição impressa do Acordo de Paris, foi aplaudido ao dizer que o caminho, agora, passa por colocar o tratado em pleno funcionamento. O secretário-executivo da UNFCCC lembrou que, na trilha para a COP30, os países precisarão apresentar suas novas contribuições nacionalmente determinadas em 2025. “Cada compromisso sobre finanças, adaptação e mitigação precisa estar alinhado à meta de 1,5ºC”, disse, sinalizando que ainda há muito em que se avançar nos próximos dois anos. 

A ministra brasileira do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, uma das primeiras a discursar na plenária, reforçou o quanto os próximos dois anos serão cruciais para que o planeta tenha uma chance de limitar o aquecimento e evitar o colapso climático. Destacando a necessidade de medidas mais concretas quanto aos meios de implementação (dinheiro, em bom português), cobrou países ricos e suas responsabilidades. 

“Nossa próxima tarefa é alinhar os meios de implementação necessários, assegurando a fundamental premissa da transição justa. É fundamental que os países desenvolvidos tomem a dianteira na transição rumo ao fim dos combustíveis fósseis e assegurem os meios necessários para os países em desenvolvimento poderem implementar suas ações de mitigação e adaptação”, disse.  (CLAUDIO ANGELO E LEILA SALIM)


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Revista Piauí- Grileiros avançam sobre o Distrito Federal.Com apoio de políticos, eles invadem unidades de conservação, desmatam e faturam com a venda de lotes – tudo a poucos minutos da Praça dos Três Poderes

Numa rua de terra batida, acumulam-se anúncios de venda de terrenos. As placas, enfileiradas no acostamento, quase somem debaixo da poeira levantada pelos carros. Para onde se olhe, há uma parede de tijolos sendo erguida. Na Colônia Agrícola 26 de Setembro, nada movimenta tanto dinheiro quanto a construção civil. A demanda é tanta que há cinquenta lojas de materiais de construção no bairro.

O assentamento fica no Distrito Federal, a 26 km do Palácio do Planalto, e recebe novos moradores a cada dia. Hoje, a população dali é estimada em 35 mil pessoas. A maioria delas vive em casas simples, construídas em ruas sem asfalto, sem saneamento e sem presença do poder público. Não há escolas ou postos de saúde. Quase ninguém paga por energia elétrica – só duzentas pessoas, estima a associação de moradores, o que equivale a menos de 1% da população local. 

O bairro tem essas características porque é ilegal. Foi quase todo construído em terras públicas, numa área de conservação onde deveria haver uma floresta preservada. Nenhum imóvel tem certidão registrada em cartório. Do ponto de vista da lei, todos os que se dizem proprietários de terras naquele bairro são grileiros.

O problema se arrasta há mais de vinte anos. Nos anos 1990, quando as primeiras chácaras apareceram na região, o governo federal criou a Floresta Nacional de Brasília (Flona), uma área de preservação ambiental de 9 mil hectares que incluía a área atualmente ocupada pelo assentamento. O plano era transferir os moradores dali para outro lugar, já que não é permitida a ocupação humana em unidades de conservação. A desocupação, porém, nunca aconteceu. Com o tempo, invasores foram se apossando daquelas terras, construindo casas, comércio e chácaras.

Casos com esse se repetem em diferentes partes do Distrito Federal, ameaçando a flora nativa da capital do país. Levantamento inédito da piauí em parceria com o projeto Data Fixers mostra que ao menos 1.026 pessoas físicas ou jurídicas declararam ao governo federal, por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR), serem donas de terras em unidades de conservação do DF. Somados, esses cadastros totalizam 69 mil hectares, o equivalente a 90% da área de preservação existente. 

 

No Parque Nacional de Brasília, um destino turístico conhecido por suas cachoeiras e piscinas naturais, mas que também abriga espécies ameaçadas de extinção, como o gato-maracajá e o tamanduá-bandeira, duas pessoas registraram cada uma um CAR dizendo ter posse de mais da metade da área do parque – uma ilegalidade flagrante. Os dados foram fornecidos à piauí e ao projeto Data Fixers pelo Instituto Brasília Ambiental (IBRAM) em novembro de 2022. A reportagem pediu uma atualização dos números este ano, mas, dessa vez, o pedido foi negado. O instituto, que é vinculado ao governo do DF, alegou que os dados são sigilosos.

Os CARs são autodeclaratórios. Esse mecanismo foi criado pelo governo federal, em 2012, para facilitar a fiscalização de propriedades rurais. A intenção era monitorar se os proprietários estavam respeitando as áreas de preservação ambiental, mas a ideia logo foi subvertida: no Cerrado, assim como na Amazônia, grileiros passaram a usar o cadastro rural para legitimar a posse de terras em áreas ilegais. O registro dá um verniz legal ao que não é.

Em geral, depois de obter um CAR numa área protegida pelo poder público, grileiros solicitam um registro do Incra – o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – e aguardam uma futura desafetação da unidade de conservação. Caso a área um dia deixe de ser preservada, eles poderão reivindicar a posse da terra. 

A diferença entre a grilagem na Amazônia e no Distrito Federal é que, neste último, o objetivo do grileiro não é transformar a área numa propriedade rural particular, mas criar loteamentos urbanos, que lhe permitam lucrar com a venda de terrenos. As placas anunciando a venda de imóveis na Colônia 26 de Setembro, por valores que variam entre 55 mil e 105 mil reais, atestam o sucesso do modelo criminoso. A prosperidade é tanta que o esquema entrou no radar de traficantes e milicianos.

 

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Vídeo mostra a linha que separa a Colônia 26 de Setembro das áreas ainda preservadas da Floresta Nacional (Flona) de Brasília

 

Quando a Secretaria de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal tenta barrar novas construções na Colônia 26 de Setembro, os moradores costumam apelar para Francisco Joélio Rodrigues da Silva, o Miguel da 26. Cinegrafista de uma empresa que presta serviços para o Senado, ele vive no bairro há catorze anos e preside a associação dos moradores. No ano passado, se lançou candidato a deputado distrital pelo PSDB, mas teve apenas 4.252 votos e não se elegeu.

“Eu tô sofrendo uma perseguição aqui, Miguel, por favor me ajuda com as autoridades. Eu só tô reivindicando um lugar pra eu morar”, diz um homem, no telhado de um barraco, cercado por funcionários do governo distrital que derrubavam tapumes. A cena, ocorrida em outubro do ano passado, foi filmada por Miguel e publicada por ele no Instagram. “Olha o morador reivindicando o direito de moradia”, afirmou o líder comunitário no vídeo, enquanto assistia à desocupação.

Um processo na Justiça indica que o próprio Miguel atua na venda de lotes. Lu Tong Lin, um chinês radicado no Distrito Federal, diz ter vendido a ele uma chácara na Colônia 26 de Setembro, que Miguel posteriormente dividiu em lotes e revendeu a terceiros. Depois de um desentendimento entre ambos, porém, Lin entrou na Justiça para tentar reaver o imóvel. No processo, Miguel foi acusado de ameaçar de morte um vizinho que iria testemunhar a favor de Lin. Os pedidos de Lin, no entanto, acabaram rejeitados. A juíza entendeu que tanto ele quanto Miguel tinham cometido crime ao dividir e comercializar terras dentro de uma unidade de conservação.

Miguel da 26 fez dobradinha, na eleição, com o senador Izalci Lucas (PSDB), que disputou o governo distrital, e com a ex-ministra da Secretaria de Governo Flávia Arruda, que se lançou ao Senado pelo PL. Os três fizeram carreatas juntos na Colônia 26 de Setembro. Em busca de votos, prometiam a desafetação do assentamento – isto é, defendiam mudar a lei para que aquela área deixasse de ser uma unidade de preservação ambiental, legalizando, com isso, sua ocupação.

Quando ainda era deputada federal, Arruda propôs, em 2020, um projeto de lei reduzindo em 4 mil hectares a área protegida da Floresta Nacional de Brasília. A mudança abarcava a Colônia 26 de Setembro. Como compensação, o texto propunha aumentar outra área de conservação dentro da floresta. O projeto foi aprovado na Câmara em maio de 2022. Ao chegar ao Senado, recebeu uma única emenda, do senador Jaques Wagner (PT-BA), propondo que a unidade a ser ampliada fosse o Parque Nacional da Chapada da Contagem, também no DF.

Izalci, relator do projeto, se opôs à emenda. Seu argumento era pouco esclarecedor: segundo o tucano, a redução da Floresta Nacional de Brasília “por si só, trará benefícios ambientais à unidade de conservação federal”. Não explicou como isso seria possível sem que houvesse alguma forma de compensação pela mudança.

A lei, apoiada pelo Ministério do Meio Ambiente, foi sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral, a tempo de ser celebrada pelo candidato Miguel da 26. “É dia de festa, graças ao presidente Bolsonaro, o nosso libertador”, escreveu o cinegrafista nas redes sociais. Embora tenham cumprido a promessa feita aos assentados, nem Izalci nem Arruda foram eleitos. (O gif abaixo mostra, em vermelho, as áreas que deixaram de fazer parte da unidade de conservação por causa da lei sancionada em 2022.)

 

 

O PV contestou a lei no Supremo Tribunal Federal (STF), mas o caso ainda não foi julgado. Embora a Colônia 26 de Setembro não faça mais parte da Floresta Nacional de Brasília, ela continua sendo terra pública – e, portanto, a ocupação ainda é ilegal. Procurado pela piauí, Miguel disse que atuou somente para defender os interesses dos moradores e que as acusações de grilagem feitas por Lu Tong Lin não procedem. “Eu apenas fiz o intermédio entre ele e os interessados nos lotes.” 

O senador Izalci explica que tentou, por meio de um outro projeto de lei [o PL 4379, de 2020], estabelecer uma compensação ambiental pela desafetação daquela parte da Flona de Brasília. A proposta foi aprovada no Senado e ainda tramita na Câmara. O tucano, no entanto, argumenta que a desafetação não incentiva a grilagem na Colônia 26 de Setembro. “Não regularizar [a área] é que incentiva a grilagem. Os caras têm que morar em algum lugar”, afirmou à piauí. A ex-deputada Flávia Arruda também foi procurada, mas não se manifestou até a publicação desta reportagem.

 

 

Em maio do ano passado, uma operação do ICMBio aplicou milhares de reais em multas a invasores do Parque Nacional de Brasília, maior unidade de conservação do Distrito Federal, com 42,3 mil hectares. Segundo o órgão, eles desmataram e construíram casas no parque. A invasão é feita pelas beiradas, e se acelerou nos últimos anos. Ao Norte, foram instaladas dezenas de chácaras. Ao Sul, além da Colônia 26 de Setembro, está em curso uma ocupação desordenada feita por famílias sem teto, que deram origem à favela Santa Luzia. É uma das áreas mais pobres da capital. Tem 16 mil moradores e abriga integrantes do Comboio do Cão, uma facção criminosa do Distrito Federal. O narcotráfico tomou conta do local. 

piauí esteve na Santa Luzia em setembro. A presença da reportagem chamou a atenção de dois “olheiros”, homens armados que vigiam as entradas da favela e têm o papel de alertar os traficantes caso apareçam policiais. Um dos olheiros abordou o repórter e o fotógrafo da piauí para conferir se não eram policiais à paisana.

A ocupação ilegal de terras é uma marca de nascença do Distrito Federal. A primeira Constituição republicana, de 1891, previa que a capital deveria ser transferida do Rio para o interior do país. No começo dos anos 1950, com Getúlio Vargas, o governo definiu a localização de Brasília: ficaria no Planalto Central, uma área elevada no meio de três grandes bacias hidrográficas – as dos rios Amazonas, São Francisco e Paraná. Coube a Juscelino Kubitschek tirar a ideia do papel.

A ideia era desapropriar toda a área do Distrito Federal, cerca de 14 mil km² na época, por meio da Novacap – a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil. Mas o plano não foi adiante, primeiro porque já existiam duas cidades no local (Planaltina e Brazlândia), segundo porque, graças à especulação imobiliária, as terras tinham encarecido muito desde que a nova capital fora anunciada. No fim das contas, o governo desapropriou só a área onde está situado o plano piloto de Brasília.

A primeira invasão de terras ocorreu ainda durante a construção da capital. Migrantes nordestinos que trabalhavam nos canteiros de obras, mas não tinham onde ficar, ocuparam a fazenda Taguatinga, recém-desapropriada pelo governo federal. Por ser uma área pública, não poderia ser ocupada, mas foi. Dois anos depois de ser criada, Taguatinga somava 26 mil habitantes. Hoje é uma das principais cidades-satélite do Distrito Federal, com mais de 200 mil moradores.

A ditadura militar conseguiu frear a grilagem ao construir grandes loteamentos de terra como Guará e Ceilândia (que se chama assim por causa da Campanha de Erradicação de Invasões, a CEI, criada pelos militares). Na segunda metade dos anos 1980, contudo, o problema fundiário voltou com tudo. Joaquim Roriz, que governou o Distrito Federal por quatro mandatos (de 1988 a 1995, e de 1999 a 2006) filiado a diferentes partidos, incentivou a ocupação de terras públicas e a criação de cidades-satélite, entre elas Águas Claras, Samambaia e Vicente Pires.

“O Roriz criou um império político-eleitoral baseado na concessão indiscriminada de terras. Até hoje o Distrito Federal sente os efeitos danosos dessa política demagógica no planejamento urbano”, diz o professor de urbanismo da UnB Frederico Flósculo Pinheiro Barreto. Segundo ele, desde que Brasília foi erguida no Cerrado, “política partidária e grilagem de terras sempre andam de mãos dadas”.

piauí perguntou ao governo do Distrito Federal qual é a área ocupada hoje por loteamentos irregulares em Brasília, mas a administração disse não ter uma estimativa. A grilagem, além de prejudicar o planejamento urbano, afeta a rede hídrica do Distrito Federal, que já está entre as mais críticas do Brasil, de acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA). Por não ter grandes rios, Brasília é abastecida por grandes lagos, entre eles o Paranoá, Santa Maria e Descoberto.

De acordo com o professor do departamento de engenharia civil e ambiental da UnB Sergio Koide, o lago Descoberto, responsável por 60% do abastecimento de água do Distrito Federal, tem perdido nascentes devido à expansão desordenada da Sol Nascente, a maior favela brasileira, situada a Oeste de Brasília, com 93 mil habitantes. O quadro, explica Koide, deve se agravar com a ocupação de uma área de 996 hectares ao Norte do lago que pertencia à Floresta Nacional de Brasília, mas que deixou de ser área de preservação por causa do projeto de Flávia Arruda.

O crescimento da Colônia 26 de Setembro e da vizinha Vicente Pires pode comprometer futuramente a capacidade do Paranoá, o lago mais famoso da capital. “Infelizmente, já estamos sentindo um déficit hídrico no Distrito Federal”, lamenta Koide. Em 2018, durante uma seca severa, os brasilienses tiveram de racionar água. O presidente da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb), Luís Antônio Reis, disse à piauí que a autarquia tem reduzido os danos ao lago Descoberto por meio de programas de incentivo a produtores rurais que conservam áreas de nascente. “É uma maneira de reverter a pressão urbana nessa região.”

 

Chácaras construídas na porção norte do Parque Nacional de Brasília, maior unidade de conservação ambiental do DF  Foto: Sérgio Lima

 

OCadastro Ambiental Rural (CAR) comporta alguns disparates. Parte da favela de Santa Luzia está registrada em nome da Sociedade Tropical de Melhoramentos, uma imobiliária pertencente ao advogado Oswaldo da Silva Mendes. Ele é dono dos maiores CARs dentro de áreas de conservação do Distrito Federal. Diz, no papel, ser proprietário de 29,6 mil hectares (ou 69%) do Parque Nacional de Brasília.

Goiano, Mendes chegou ao Distrito Federal ainda jovem, no começo dos anos 1960. Abriu uma construtora e enriqueceu graças ao boom imobiliário da região. Em 1980, enfim, comprou de um de seus irmãos a Sociedade Tropical de Melhoramentos.

Nos dados de 2022 do Instituto Brasília Ambiental (Ibram), a imobiliária constava como dona de nove CARs sobrepostos a unidades de conservação no Distrito Federal. Em uma de suas propriedades legalizadas, às margens da rodovia DF-180, Mendes construiu uma estátua enorme de Dom Quixote. Diz ser fã do fidalgo criado por Miguel de Cervantes. Procurado repetidas vezes pela piauí em seu e-mail e por WhatsApp, o advogado não se manifestou até a publicação desta reportagem.

Há outros casos graves. Segundo o Ministério Público Federal, ao menos um dos CARs registrados em área de preservação do Distrito Federal foi usado para lavar dinheiro do jogo do bicho. Trata-se da Fazenda Gama, uma terra de 4 mil hectares, dos quais 880 invadem a Estação Ecológica do Jardim Botânico. Na matrícula do imóvel, consta que ele foi comprado em 1990 por Edgard de Goes Monteiro, que, vinte anos depois, o revendeu para seu filho, o piloto de avião Matheus Paiva Monteiro. O MPF alega, no entanto, que o documento é fraudulento: Edgard morreu em 1973, dezessete anos antes de supostamente comprar o imóvel, portanto.

Na compra do imóvel, Monteiro pagou ao seu pai 3,5 milhões de reais, dos quais 2,7 milhões em espécie e em depósitos bancários. Segundo o Ministério Público, o piloto era testa de ferro do bicheiro Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, e o dinheiro utilizado na compra da fazenda provinha do jogo do bicho. Por conta do episódio, o Ministério Público denunciou Cachoeira, Monteiro e outros quatro por lavagem de dinheiro. A ação tramita na 10ª Vara Federal de Brasília. Devido ao segredo de Justiça, a assessoria da Justiça Federal no DF não pôde informar se houve sentença no caso. Procurado pela piauí, Monteiro não quis comentar o episódio.

 

Em áreas griladas densamente povoadas, como a Colônia 26 de Setembro e a Sol Nascente, a posse dos imóveis é, muitas vezes, garantida à força. Grileiros com maior capacidade financeira contratam milícias formadas por policiais civis e militares para proteger seus lotes e, em alguns casos, tomar áreas de terceiros.

Uma investigação da Polícia Civil mostra que casos assim acontecem ao menos desde 2000. Naquele ano, o então delegado Francisco de Assis Barreiro Crizanto e sua equipe foram contratados como seguranças a serviço de grileiros do condomínio Privê, no Lago Norte, em Brasília. Meses depois, expulsaram um dos moradores do condomínio, derrubando a cerca que delimitava o terreno de seu imóvel. Segundo os investigadores, o delegado esperava receber, como forma de compensação por esse ato de violência, alguns lotes do condomínio. Depois os venderia para injetar dinheiro em sua campanha a deputado distrital, em 2002.

“Em nossos lote tem que tá juntinho pra poder… a gente vendê”, disse Crizanto, em conversa interceptada pela Polícia Civil com autorização judicial. “Aquilo lá é filé na mão, é igual […] pão em feira, rapaz”, respondeu o interlocutor, um advogado envolvido no esquema. “É, mas eu vou querer é pra campanha, moço”, finalizou o delegado. Ele não conseguiu se eleger e foi condenado pelos crimes de corrupção passiva (pena que prescreveu, anos depois) e improbidade administrativa. 

Crizanto foi afastado da Polícia Civil, mas voltou a se candidatar nas eleições de 2006, 2010 e 2020, sem nunca conseguir se eleger. No último pleito, declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de 9,7 milhões de reais, incluindo cinco lotes no conjunto habitacional Sol Nascente e uma casa de 6 milhões de reais no Lago Norte. Nos registros do CAR, o ex-delegado, que hoje trabalha como advogado, também se diz dono de 39 hectares dentro da Área de Relevante Interesse Ecológico JK, vizinha à Sol Nascente. Procurado por e-mail, ele não se manifestou.

Em 2015, uma investigação da Polícia Civil destrinchou o processo de grilagem na Sol Nascente, que começara havia poucos anos, quando os primeiros grileiros desmataram a área, aterraram um pequeno lago, improvisaram ruas e começaram a vender lotes a preços baixos – cerca de 5 mil reais, em valores da época. Os criminosos chegaram a fraudar documentos de cartórios de Goiás para dar verniz de legalidade à operação. Assim nasceu a favela mais populosa do Brasil.

Pouco tempo depois, quando se instalou uma rede de energia e foram abertos os primeiros poços artesianos, os lotes tiveram uma valorização súbita. Passaram a ser vendidos a 40 mil reais. Os grileiros então começaram a pressionar os primeiros compradores a pagar a diferença: se haviam comprado os lotes por 5 mil reais, teriam que completar o pagamento com 35 mil. Quem não aceitasse era expulso da comunidade. Era aí que entrava em cena um grupo de policiais militares lotados no 8° e no 10° Batalhões da PM, responsáveis pelo patrulhamento da Sol Nascente. Cabia a esses agentes expulsar moradores que se recusassem a pagar uma segunda vez pelo mesmo lote, ou mesmo repelir invasores de outras regiões da cidade. Os policiais – milicianos, na prática – eram pagos com terrenos na comunidade.

Além disso, segundo o Ministério Público, os PMs vendiam armas e drogas apreendidas em outros bairros para integrantes da facção criminosa Comando Sol Nascente, que lucrava com o tráfico e com a extorsão de moradores. Os comerciantes que trabalham na favela eram obrigados a pagar “taxas de segurança” para a facção – mesmo modus operandi das milícias do Rio de Janeiro. Essa mistura de grilagem, tráfico e milícia explica os altos índices de violência na região: entre 2009 e 2015, 205 pessoas foram assassinadas na favela Sol Nascente.

Em conversa captada pela Polícia Civil, um dos grileiros falou sobre a proteção que os PMs davam ao esquema: “Melhor você comprar um negócio garantido, que ninguém vai mexer com você, do que você comprar um negócio que vai arrumar confusão, vai arrumar problema. Lá não, querendo ou não tem nós e a polícia.”

Segundo a Polícia Civil, um dos PMs envolvidos no esquema era o sargento João Batista Firmo Ferreira, tio da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. As interceptações telefônicas indicam que, além de ameaçar invasores e inadimplentes, Ferreira negociava lotes tanto na Sol Nascente quanto na Colônia 26 de Setembro. “Tem um lote de 650 metros [quadrados] na 26 pra dar pra eles e vão torrar barato”, disse, em um dos grampos. Ele e outros seis PMs foram presos e expulsos da corporação, depois de condenados por associação criminosa, extorsão, homicídio e outros crimes relacionados à grilagem de terras. A facção Comando Sol Nascente foi desmantelada depois de sucessivas investidas da Polícia Civil que começaram em 2019, com a deflagração da Operação Hórus.

A Polícia Civil investiga, hoje, a atuação de organizações criminosas na Colônia 26 de Setembro. Em agosto de 2020, um policial civil foi baleado e dois PMs ficaram feridos durante uma operação para derrubada de imóveis irregulares no bairro. A Secretaria de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal suspeita da ação de milicianos.

Revista Piaui

https://piaui.folha.uol.com.br/distrito-federal-grileiros-car-brasilia/?utm_source=newsshowcase&utm_medium=gnews&utm_campaign=CDAqEAgAKgcICjCZ-JwLMKqCtQMwud7nAQ&utm_content=bullets&gaa_at=la&gaa_n=AYRtylYvFsRZaZi-p-TolLksBZnfD_Q_AELHZQrkuSRS14doKF4_sp083XDd80CdoKr9KRzoetOyRs56ldcJUxbqbtBk24MlAHvSyjHzLtF5&gaa_ts=656693f6&gaa_sig=K6MV3NFTx4eSYb2dSBH6DTEFzyQuW26I8iuvKDznyKxPJ2B7n1oZpwix2O6ASKriLlhJmb7F-hQDwiakZYDs4Q%3D%3D